sábado, 1 de setembro de 2012

Varanda para o Indico



Fomos à Zavala (Quissico) para vermos a realização do M’saho, o festival de timbila que vai na sua décima oitava edição, que se realizava sob o lema “Plantemos o mwenge para preservar a timbila”. Queríamos testemunhar a execução de uma grandeza rítmica que só a timbila é capaz de proporcionar. Vários grupos se fizeram ao palco do Miradouro, ponto a partir do qual, é também possível observar um outro espectáculo criado pela natureza: o longo lençol verde formado, na sua maioria, por palmeiras e que é atravessado pelas límpidas e cristalinas águas das oito lagoas de Quissico que se comunicam com o Oceano Índico. Beleza paradisíaca.Não há dúvidas de que esta é e será sempre uma das maiores manifestações culturais originais e genuínas que Moçambique e o seu povo se orgulham de possuir: a Timbila.E desta vez o palco do Miradouro não era somente para a timbila. O Mapiko e o Tufo – duas expressões culturais das províncias de Cabo-Delgado e Nampula – foram se juntar àquele local. Uma excelente ideia.Até porque a intenção é mostrar o rico e grandioso património cultural de Moçambique. Inesgotável.Esta simbiose cultural acontece numa altura em que o Mapiko e o Tufo são expressões que querem ser candidatadas ao património oral e imaterial da humanidade. O mesmo acontecendo com o Xigubo de Gaza. Um gesto digno de realce e que cimenta a unidade nacional.Até porque é interessante ver gente proveniente de todas as latitudes do país a ir “acocorar-se” em Quissico e deixar-se embalar com o mavioso som que só a timbila é capaz de oferecer. O bater dos escudos no chão, em simulações guerreiras, vai nos fazer viajar pelos tempos dos guerreiros de Ngungunhane e Maguiguana.Mas tudo isso não vai acontecer antes da actuação do mkwaio, que é a selecção dos melhores marimbeiros de Zavala. E o mkwaio será para executar o Hino Nacional, com recurso a timbilas. Um espectáculo de encher os olhos. Depois seguiu-se o célebre tema de homenagem ao mestre Chambine, um dos maiores marimbeiros e grande compositor de que há memória em todo o distrito de Zavala.Natural da localidade de Mavila, na zona entre Matimbine e o litoral, foi o mestre Chambine que compôs um dos temas que a Rádio Moçambique sempre usava na abertura das suas emissões.
O grupo Timbila de Chizaho, criado pelo Professor Cremildo Pedro Nhantole, é um dos melhores de actualidade, tendo até ter sido escolhido para representar Moçambique num festival internacional de cultura, que teve lugar entre os meses de Abril e Maio, na França. Este grupo infanto-juvenil tem uma alta capacidade de criatividade e coreografias giras. São oito marimbeiros que compõem a orquestra, sendo dois que tocam “xibembe” que equivale ao baixo, dois contra-solos e quatro solistas. O grupo exibiu-se muito bem. Pena não ter sido dado tempo suficiente para que eles actuassem. É que cada grupo tinha direito a 25 minutos, mas isso não aconteceu com o Timbila de Chizaho. Este grupo foi criado em Abril de 2002, na povoação de Chizaho. No total são 38 membros, mas devido às condições criadas no local levaram simplesmente um número suficiente capaz de ser devidamente atendido em Quissico.  
Quando foi anunciado a entrada em palco do grupo cultural de Mapiko todos ficaram simplesmente a pensar que só seriam as vozes dos coristas. Mas, eis que de repente surge um bailarino todo coberto. A máscara era a esfinge de Samora Machel. A plateia, que enchia todo o miradouro, levantou e, efusivamente, aplaudiu. O bailarino foi se contorcendo, ao mesmo tempo que aplicava várias coreografias que davam para perceber que nos remetia para questões do desenvolvimento sócio-cultural de Moçambique. Excelente actuação. E isso encheu de alegria grande parte dos espectadores dos artistas que assistiam pela primeira a uma apresentação de Mapiko.
Depois veio o Tufo, com uma excelente actuação das belas coristas muthianas, todas com os rostos pintados de m’siro.Criado no longínquo ano de 1931, o grupo de Tufo Estrela Vermelha de Carrumpeia vai se renovando com o tempo. E em Quissico eles exibiram uma coreografia estonteante que demonstra vários momentos do dia. A coreografia inicia com o despontar do sol e as actividades que encerram este dia. Depois vem o dia até ao seu fenecer.E para representar estes diferentes momentos do dia, o grupo foi mostrando diferentes vestes cujas cores o simbolizavam o seu percurso.A coreografia expressa ainda aquilo que é também a mulher macua, e, no geral, a moçambicana: esbelta e esguia, culta e trabalhadora.Tanto o Mapiko como o Tufo exibiram-se em dose-dupla, porque o público pediu mais, o que demonstra não somente satisfação, como também espanto curiosidade. Parabéns os organizadores do evento pela ideia, pois isso permitiu que muita gente que nunca tinha visto estas expressões culturais entrasse em contacto com elas. E os grupos que lá estiveram não deixaram os seus créditos em mãos alheias.E nós exaltamos aqui a importância da troca de experiências entre os vários grupos culturais dos diferentes pontos do país e também entre os artistas. Por exemplo, era a primeira que estes dois grupos actuavam numa das províncias da região Sul do país, daí os integrantes do grupo terem também ficado maravilhados com a exibição dos grupos de timbila. Até já se pensa em futuras colaborações, isto em prol da cultura moçambicana.
Muitos jovens que integravam o Timbila ta Mwane abalaram. Uns estando na África do Sul ou na capital do país em busca de novas oportunidades de vida. Quem não quer viver bem, diz-nos alguém ao lado. E esta é uma das razões porque o grupo está em reconstituição, com muitos jovens a tocarem e cantar. Mas nota-se que estes jovens têm verve e sangue quente nas guelras, isto olhando para a forma como se entregam ao canto, à dança e ao toque.  Tal como todos os grupos de timbila que se exibiram, Ngalanga de Inharrime foi palco de Quissico com novos elementos, na sua maioria, jovens que se iniciam neste exercício de dança. É bonito ver que estes estão sempre acompanhados por gente mais velha que está nestas lides há mais tempo. Os passos são fortes, firmes, revelando maturidade.  
Mas Zavala não é somente o berço da timbila. É também terra da castanha e da mandioca e de m’tona, o azeite africano feito com recurso a sementes de mafurra. Zavala oferece também xibehe, produzido com recurso a mafurra.Falemos então dos momentos mais marcantes do evento.Do miradouro pode visualizar-se o verdadeiro paraíso que a natureza destinou aos zavalenses: surgem as lagoas de Quissico, as dunas e montanhas e depois o Índico, dando-nos um conjunto ecológico e paradisíaco empolgante, próprios de uma vila que se pode transformar numa bela cidade futura, próspera, fanhosamente animada de actividade turística, cultural, industrial, comercial, pesqueira e de prestação de serviços, conforme deseja que aconteça Rodrigues Mário, secretário-geral da Associação dos Naturais e Amigos de Zavala (AMIZAVA).É ele quem nos diz que o interesse em realizar o M’saho já transcende o desejo e a vontade dos promotores deste evento, colocando-se como uma exigência e necessidade do público. E é uma responsabilidade de que a própria Associação não pode e nem deve eximir-se dela. 
Por Francisco Manjate

Olharmos para todos


-um pedido à nova autarquia


Este ponto de vista, já foi expresso, por mim, faz tempos, e num semanário do país. Deixarei o corpo principal intacto, pela actualidade, mas com uma incontida tentação de mudar o titulo para: “quando a gratidão urge”.

Quelimane teve e tem heróis, reconhecidos e reconhecíveis, incontestavelmente. E entendendo que esses heróis só podem ser valorizados, e sobretudo, ser referência, ser exemplo, provocando assim legiões de seguidores, se os soubermos registar, divulgar e exaltâ-los. E a minha grande decepção em relação ao município de Quelimane, é não ter feito isso. E aqui quero estender às associações desportivas. Para homens como os que a seguir se arrola, se forme a toponímia da cidade. Avenidas, ruas, praças, edifícios públicos, salas, salões que ostentem os nomes destes e/ou outros, de acordo com a sua grandeza na contribuição que tiveram na cidade ou instituição.
Cuidado: a ordem é aleatória:

-José Manuel Carvalho da Cunha; defensor de pretos e pobres no tempo colonial. Não apenas mas sobretudo.
-Padre Saldanha; trabalhou a cabeça da maioria dos nossos pais, tirando-lhes do analfabetismo.
-Arone Fijamo; membro fundador da Associação Humanitária, enfermeiro; prisioneiro da Pide, homem de letras.
-Padre Bernardino; cativador da massa juvenil para a igreja, dirigente de uma associação que dava comida e roupa aos indigentes.
-Tomás Firmino; professor de canto coral, movimentava a cidade, dava apoio aos alunos pobres, pagando-lhes as propinas, autor do hino da cidade de Quelimane e da Escola Técnica- os quais devem ser recuperados e adaptados se necessário.
-Os Nhaquinzes; trabalhadores eventuais do conselho municipal que se encarregavam da limpeza da cidade de Quelimane
-Conjunto os Cometas, grande animador dos carnavais de Quelimane e não só.
-Dr Leitão Marques; médico cirurgião que acodia aos doentes, não apenas no hospital, como também nas suas casas, quando solicitado, independentemente do seu estatuto social e cor. Competente, polivalente.
-Associação Africana da Zambézia; o clube que nos permitiu praticar o desporto sem sentir-se fantasmas, proporcionou bailes e um edifício, que hoje chamam-lhe a Casa da Cultura.
-David Campeão do Mundo- de ofício sapateiro, boémio, amigo da malta dos bairros, onde era sobejamente conhecido pelas sua frases célebres.
-Bonifacio Gruveta; creio que reune consenso ultrapassando partidos e tudo o mais, dele falarei em breve.

Outros mais poderão ser apontados, como por exemplo o padre Francisco que foi um grande impulsionador do desporto não federado e não só; o velho Barros, chamam-lhe o contador de anedotas, mas eu prefiro designar-lhe exímio contador de histórias curtas, maravilhosas, absurdas e fantásticas, as quais se contam em todo Moçambique, muitas vezes sem lhe conhecerem o autor, inventor de termos e expressões; o velho Paulo, barbeiro do bairro Kansas, outro contador de histórias e fofocas, enquanto remedeava cabeças; o velho Dalas, sportinguista ferrenho que levava a miudagem do bairro para o seu Sporting; e outros mais tenho a certeza. Se uns a sua dimensão merece o reconhecimento da cidade, logo, da autarquia, outros, poderão ser reconhecidos pelas suas colectividades.

Hão-de estranhar que o arrolamento que faço não previligio políticos. Nada tenho contra eles, mas parece-me que é tempo de olharmos para todos: o sapateiro, o vagabundo singular, o médico, o professor. Esses heróis são sempre anónimos. Ao menos uma vez, e num local sejamos diferentes. Ergamos o seus nomes, pelo exemplo e legado que nos deixaram. E façamos, sem receio,  com orgulho. E espero que Quelimane, como sempre soube, seja diferente.
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Estando em tempo de propostas, aos romancistas e contistas, recomendo uma pesquisa sobre a vida de; velho Maquil, velho Barros, velho Paulo, Vasco de Oliveira, Alidgibay, Vicente Cólô, David Campeão do Mundo. Tem assunto e tramas, os quais nas mão de um bom arquitecto de palavras dá para vários best-sellers, de acordar o Jorge Amado.

Por LO-CHI

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Dor! Tristeza total!


China já lá vai, mas as lembranças que vivi naquela terra enigmática sempre permanecerão, eternamente, no meu ego e na minha vida. Uma delas foi ter descoberto o outro lado do amor, uma significância vinda de muitas e longas noites de solidão, de dor, mas também de alegria.
Amor! Uma palavra de quatro letras. Um sentimento que dificilmente se explica. Esse envolvimento que alguém um dia chamou de “fogo que arde sem se ver”. Esse dueto coreográfico que, mal concebido, pode ser motivo de ódios, guerras e mortes, mas que todos nós participamos na audição para sermos eleitos como actores principais da peça.
Girei em volta do pequeno espaço que tinha no quarto. Masturbei intensamente o meu cérebro à procura da significação artística desse amor que era celebrado e que, mesmo com a distância a separar..., ele vive nos corações dos que se amam!!!
Amor! Um dueto clássico das mais belas coreografias que a natureza criou, cujo epílogo, infelizmente, sempre termina em tragédia. Um espectáculo concebido em QUATRO ACTOS que na sua longa história já foi titulado amor platónico, erros, psique, ludus, storge, pragma, mania e ágape. Uma peça onde cada coreógrafo concebe a história à sua maneira, porém, o SENHOR faz as honras de fechar a cortina quando todos menos esperam.
No primeiro acto, a cortina do palco abre-se lentamente. A picada da luz vermelha ilumina dois pombos em olhares de esguio, profundos e intercalados em toques macios nas mãos. Os dois actores refugiam-se nos cantos do palco, fingindo incompetência sentimental. A luz vermelha desaparece e dá lugar ao branco da lua. Há troca de rosas. Postais. Jantares. Presentes. Há paz. Há cumplicidade mútua. O sorriso brilha e vem ao de cima o toque mágico. As carnes labiais corroem-se de forma tirânica. Não respiram. Os vultos abraçam-se. O dueto prescinde da luz branca e entram os electro-projectores. Há uma sequência intensa de cambalhotas e piruetas no palco. O momento parece trágico, mas não, é o êxtase. O sexo. A iluminação projectada desaparece com os dois actores deitados no estrado, impotentes, de mãos dadas e em carícias, a contemplarem a imagem do céu e da terra. Qual Adão e Eva!!!. Fim da primeira cena.
Chegamos no segundo acto onde muda o cenário do palco. Agora explora-se o verde de esperança. Um momento de incertezas, de desconfianças, do excesso de zelo no amor. O espectáculo quebra, entra em monotonia e nota-se uma falta de criatividade dos actores. A luz escurece seguindo a onda da performance. É tempo de tomar atitude, o público fofoca num acto não convidado. Um dos actores toma a iniciativa e entra em acção!!! Há o indulto. O espectáculo volta a brilhar. Ouve-se palmas nos bastidores. Há saltos que põem em risco os bailarinos em cena, é importante a confiança e perseverança entre ambos para que o show continue em alta. O ciclorama é decorado com a escultura da Afrodite: deusa do amor, sexo e beleza corporal. Na casa do Senhor, assinam o contrato social. É festa rija. A luz desaparece com o xiguiane a condimentar o vínculo numa noite que só faltou o pilão com água...!

O terceiro acto é das núpcias. No palco, entra o amarelo, a luz do calor e da descontracção. Há intensidade sexual nas primeiras cenas. É fogo que arde agora com os bailarinos a verem. O espectáculo entra na fase crítica. É preciso criatividade artística aos coreógrafos, pois, podem entrar em cena outros bailarinos. São nove meses do fabrico do novo bailarino. Poderá deixar de ser dueto. Muitos bailarinos poderão fazer parte do corpo do baile do Grupo Júnior, dependendo das decisões dos coreógrafos. É preciso investir na cenografia e guarda-roupa para os novos integrantes da Companhia. Agora o espectáculo mescla várias formas de expressão artística no mesmo palco, neste caso, a família constituída. O espectáculo continua fantástico. A criatividade atinge o seu apogeu. O público adora, vibra, grita, aplaude. Os coreógrafos sorriem, têm mais projectos artísticos. Espreitam contratos milionários. E de repente. Phu!!! A luz apaga-se. Escuridão total. A cortina fecha-se bruscamente. Chora-se!!!
Entramos no acto dos lamentos! Dor! Tristeza total. A alegria transformou-se em dilúvio. Um dos actores pombinhos está seco, imóvel no palco da morte. O preto de luto bizunta o futuro corpo de baile. É nostalgia! É solidão! É o fim trágico de uma coreografia – amor – cujas peripécias – aliciantes, doces e melosos – foram interrompidas com o fechar brusco da cortina: a morte!

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Palavras guiadas

Louvo as iniciativas de promover os festivais de teatro que vão acontecendo um pouco em algumas das nossas cidades. É bom para os fazedores desta nobre arte; é bom para os espectadores àvidos de espectáculos no palco; representado pelo actor genial pela actriz espectacular. Tenho tido a oportunidade de vêr o trabalho de alguns grupos de teatro amador, tenho até trabalhado com alguns actores desses grupos; e os resultados que tenho colhido dessa experiência são em geral os mesmos: dicção dificiente, desconhecimento de pontuação e fraca projeção de voz.
Ora, sem harmonia destes elementos, colocamos em causa o resultado que se pretende numa peça de teatro. Quando o actor sobe ao palco para representar deve ter em conta, que o público o quer ouvir bem e perceber a “clareza da dicção’’; que o público quer sentir a pontuação, para  penetrar no diálogo que decorre entre os actores “palavras - guias’’; que o espectador sentado na última fila da sala, o quer compreender “projeção clara da voz”.
No teatro, a interpretação verbal constitui sempre a base do trabalho do actor, por importante que seja a interpretação plástica, visto que a finalidade de toda a actuação é dar vida à palavra do autor da obra(dramaturgo). A interpretação verbal exige como fundamento um correcto pronunciar da frase e uma clara dicção. O primeiro consiste em aprender a ler de acordo com o sentido da frase e tão claramente que nada do que é dito se perca. Cada frase encerra uma imagem que lhe dá sentido. Esta imagem pode ser representada por uma só palavra ou por um conjunto de palavras a que chamaremos “palavras-guias”.
Ao dizer a frase, temos que marcar o acento, como é lógico, nestas palavras-guias, concentrando nelas a atenção, embora sem aumentar o volume de voz. Ao tentar ler o diálogo de acordo com o sentido notaremos logo que a pontuação gramatical fixada pelo dramaturgo não corresponde, geralmente, ao modo natural de dizer a frase. Isso obriga-nos a fixar certas regras de entoação que para o actor experimentado se convertem em hábito. A entoação da frase determina-se precisamente por meio de pausas da mais variada duração. Deste modo, a pausa pode ser um brevíssimo instante, como também  pode atingir uma longa duração com o fim de efectuar uma “transição”. A pausa, em suma, ordena a frase e serve também para respirar. Respira-se sempre depois de terminar definitivamente uma ideia. Se a frase é longa, procurar-se-á para respirar o momento adequado e lógico.
Podemos estabelecer as seguintes regras para a entoação da frase em relação com a pontoação gramatical.
A vírgula não significa, forçosamente, uma pausa breve. Em muitos casos deve ignonorar-se; o ponto e vírgula podem significar uma pausa breve assim como uma pausa prolongada. Teremos de defini-la de acordo com o sentido; O ponto não significa necessariamente que se baixe a voz.(Adelino Branquinho)

domingo, 1 de julho de 2012

Mu-China

Era costume vê-lo, à sombra da sua casa, ou à da mafurreira que crescera frondosa no quintal, sentado numa cadeira de descanso, com os mãos pousadas sobre o ventre. Mal se movia. Se o fazia era apenas em casos de extrema necessidade. Parecia cansado de viver e naquele lugar aguardasse a morte iminente.A sua residência era a dos celibatários, triste e sem calor. Nunca a vizinhança o viu na companhia duma mulher ou de crianças. Em raras ocasiões recebia visitas de amigos, que lhe traziam mantimentos e por lá pouco se demoravam.Habitava uma casa de um único compartimento, no fogo número 13 da rua do Chibuto, adjacente à esquadra da polícia e ao posto sanitário. Novo residente no bairro, muitos dos seus vizinhos desconheciam a sua proveniência, os seus hábitos e ocupação.Em algumas manhãs era frequente vê-lo a sair de casa, a atravessar as ruas, a cortar pelos atalhos da Mafalala, em direcção à cidade. Se olhos investigadores o seguissem, vê-lo-iam terminar a suas jornadas no Hospital Miguel Bombarda.A sua figura despertava a curiosidade, não só da vizinhança, mas também a daqueles com quem se cruzasse nos caminhos. Vestia-se com muito aprumo, de camisas imaculadas, muito folgadas para o seu corpo franzino, e denunciavam quanto esforço fazia para camuflar a dilatação do ventre. As calças cingiam-se sobre o púbis, como se o cós das mesmas o ferisse ou lhe causasse algum desconforto.Semanas decorridas, em vez de camisas passou a envergar túnicas que lhe desciam até ao meio das coxas. E o seu andar era peculiar: lento, de quem sofre com o peso e a fadiga do seu próprio corpo, os braços afastados do corpo, como se o contacto o inquietasse; a barriga volumosa empinava-se como sucedia com as das mulheres em estado de gravidez.\   Aquela não era barriga de obesidade, descaída e flácida, como sugeriam alguns, que viam naquele homem um cavalheiro que vivia uma vida faustosa, que comia e bebia do bom e do melhor, um ricaço que vivia de rendimentos. Não! A dele era firme, arredondada e centrada, e crescia do mesmo modo como o fazia qualquer gravidez.   “ A comadre não acha que este nosso vizinho está de grávida?”, suspeita da tia Devessana, vizinha de lado do aludido.
   “ Como pode ser isso? Onde é que a vizinha já viu algum homem ficar de grávida?”, dúvida na boca da tia Ximamate, embora em silêncio alinhasse na suspeita.
    “ Só falo por falar, mas é muito estranho, não acha?”, escusava-se a Devessana.
   “ Mesmo se for gravidez como é que ele vai dar o parto? Às vezes, a comadre diz cada uma!...”, era a dona Zaituna que contra-atacava, numa fingida defesa do vizinho, porque a si também, com franqueza, causava estranheza o facto daquele embrulhar-se em roupas largas, tal como procediam as mulheres grávidas.
   “Louvado seja Nosso Senhor!”, exclamava a irmã Leonor Mu-China, de braços levantados, escandalizada com o que escutara das vizinhas. Era uma beata convicta e presença assídua no confessionário do padre Henrique.“O nosso bairro virou Sodoma. Deus nos livre destes pecadores!”.
   “ Aquilo é obra de algum invejoso. Não se acautelou com o que comia e puseram-lhe venenos na comida, e o resultado aí está! Conheço um caso que aconteceu lá em Lionde, dum conhecido dos meus pais, que foi vítima de um feitiço, depois de lhe deitarem remédios num prato de farinha com carne de cabrito. A barriga dele cresceu que até parecia uma gravidez. Aquele homem quase que arrebentava! Toda a gente dizia o que vocês estão a dizer; mas a verdade é que aquilo era um feitiço que a própria mulher lhe deitou. Valeram-lhe os cuidados de um curandeiro que o tratou e tirou-lhe do estômago pedaços de cabelos e duas orelhas de cabrito”, intervenção da vizinha Eugénia Ntivane, conhecedora dos meandros da magia negra e do feiticismo.
Os sipaios da esquadra quando vissem o homem da casa número treze apontavam para ele com os lábios esticados e escarneciam:
   “Aquele arranjou a bonita! Não acha, nosso cabo?”, cochichava um deles.
   “Ele lá sabe o que andou a fazer por aí...”, respondia o cabo, a sorrir com metade da boca. “Já vi muitas coisas na minha vida, mas esta ultrapassa os limites: um homem grávido!  I  massinguita, uma abominação, um sacrilégio!”.
   “ Sim, o fim do mundo já chegou!”, corroborava o sipaio coscuvilheiro.
 *
 Contados os meses pelos calculadores mentais dos vizinhos, aproximava-se a data prevista para o eventual parto do homem grávido. O que, para desespero de todos, nunca chegou a suceder!
Segundo se veio a saber através da senhora enfermeira Isabel, em serviço no nosso posto sanitário, o homem grávido foi internado numa enfermaria de Medicina no Hospital Miguel Bombarda, onde lhe diagnosticaram uma Cirrose Hepática, da qual se encontrava em franca recuperação e, daí a dias, teria alta e regressaria ao convívio com os seus vizinhos, para teceram outras atoardas à volta da sua vida.       
Aldino Muianga, in “Caderno de Memórias”

terça-feira, 19 de junho de 2012

Dela saía pus de sangue

O capim desapareceu instantaneamente, deixando uma passadeira estranha, invulgar, e pegadas com abertura para sepultar mais de cinco corpos. As folhas das árvores secaram e as frutas amareleceram de repente. De longe, os ventos algozes anunciavam a chegada dos desconhecidos com as suas vozes metralhadoras que sacudiam a audição dos vivos.
Uma chuva violenta e esverdeada iniciou a marcha pelas colinas daquele bairro despovoado, onde só residia a bela e escultural Mulhapfa, que, no seu aconchego debaixo da frondosa árvore, o Phimbi, lacrimejava e contorcia de dores de parto, cantando, também, ao som saboroso a vinda ao mundo de mais uma vida para lhe acompanhar naquele deserto misericordioso.
As luzes dos relâmpagos irromperam da árvore adentro feita cabana, onde Mulhapfa se encontrava nua, de pernas abertas, espelhando a obra volumosa que foi deixada solitária com a morte do esposo, ventre exposto à espera de ejacular a dádiva do Senhor. Nada se mexia no corpo da mulher sofrida: dos olhos dela saía pus de sangue que permutava com fezes dos pássaros. Dos mamilos escorria esperma infectado pela febre aftosa, do ânus espreitava um intestino estranho ao seu corpo que reclamava cesta média no lugar da básica, da vagina... nada, ela estava muda, fechada a sete chaves para que não saísse dali a nova vida.
Mulhapfa chorava no inferno da vida, clamava pelo nhanga inexistente ou pela mulher nhamussoro que lhe medicou na primeira gravidez, aos poucos perdia a respiração, mas lutava e buscava forças no além, chamava pelo nome do seu enterrado marido, dos seus vizinhos imaginários, das vacas leiteiras que lhe acompanham nas tardes de sol cheio e impetuoso.
Já sem forças e convencida que tinha chegado o tempo da sua partida para o outro mundo, perdendo, por tabela, a vida que carregava no seu “santuário”, eis que, num ápice, na religiosidade das forças dos defuntos, do poder dos antepassados, uma vaca branca com bigode, chifres entre os seios e em período de gestação cai em frente da senhora, dança algo que não existe, solta um peido no momento em que dá o último passo da dança estranha. lentamente, deixa cair saliva sobre a barriga de Mulhapfa, passa a língua entre as pernas e, por cima das mamas, deixa cair as suas fezes pretas.
Nesse instante, uma chuva de mochos de olhos de sangue levantou-se entre as folhas secas caminhando em direcção a Mulhapfa, as corujas batiam intensamente as suas asas, criando uma melodia clássica em sol sustenido, acompanhado pela orquestra das cobras mambas que chupavam o esperma que saía dos mamilos da mulher tatuada de desgraça.
As campas abriram-se em sintonia com o remoinho das missas contra os feitiços, uma poeira sangrenta levantou-se contra a cabana de Mulhapfa, homens e mulheres nus, osseados pelo tempo, saíram das sepulturas, vincaram as suas energias e poderes divinos. Em frente à mulher de pernas abertas, em olhares rancorosos e de ódio contra o mal que castigava a pobre mulher, os defuntos descarregaram a sua raiva sobre o chão onde se encontrava deitada a mulher grávida.
Num compasso de mortos em visitas de protecção, os defuntos dançaram ao redor da cabana, as batidas das suas pernas abriam covas de alegria, as ancas se moviam em movimentos sexológicos, afastando o feitiço das redondezas. O reboliço das nádegas famintas da dança salvadora fez saltitar os “aprumos” dos homens defuntos, estes zombaram contra os feiticeiros, cimentaram os pés no solo de pedras, enrugaram as faces pintadas de sangue, tiraram das bocas dos estômagos o ecoar das vozes dos madodas em contrabaixo e contracenaram com os outros mortos não presentes, phalharam em preces seculares e, tatuados de fezes humanas, comeram o capim seco dançando o xigubo da terra, a dança do Hossi, a dança dos mortos.
Os mortos dançavam em sintonia com os vivos e, no epílogo da coreografia, os mortos se juntaram e formaram um círculo mágico, onde, todos, homens e mulheres, sobre o chão onde se deitava Mulhapfa e diante do seu sexo selado pelo feitiço, dançaram a dança dos mortos, a dança contra o feitiço, com gritos, giros e com movimentos uniformes à mistura. cada um libertou o seu sémen por cima da barriga de Mulhapfa, que lentamente escorreu até colar na vagina da mulher que, em fracção de segundos, gritou ressuscitando da morte enfeitiçada, e, sem esforços, começou a dar à luz a um guerreiro que veio a chamar-se Mussivi e seguiu as pegadas dos “seus” mortos. e até hoje passa a vida a executar a dança dos mortos para salvar os vivos e eternizar os mortos.
Era a vitória dos mortos contra a vontade e feitiço dos vivos.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Infância arrapazada


Se há um adjectivo que, à partida, pode caracterizar a criação poética de Noémia de Sousa, esse adjectivo é: emocionada. Porém, com esta catalogação, corremos o risco de enclausurar a escrita desta poetisa, pioneira voz feminina das letras moçambicanas, numa etiqueta que, desde logo, se apresenta como uma marca desqualificadora. Isto, se tivermos em linha de conta toda uma prática poética e metapoética que instituiu e consagrou o lirismo da modernidade.Entre outros, pensamos no dandysme flanante e mundano de Baudelaire, no desregramento das sensações em Rimbaud, na dissolução do sujeito e no intelectualismo em Mallarmé, no distanciamento dramático em T.S. Eliot, no fingimento poético em Fernando Pessoa, em suma, no vitalismo criador que faz da poesia moderna o espaço do incessante e implacável estilhaçamento e de negação da subjectividade.Porém, tendo em conta o eflúvio personalizado da poesia de Noémia, a chamejante afirmação da interioridade do sujeito poético, a glorificação da emoção, até que ponto a sua escrita não se institui como festiva e arrogante recusa de uma tradição que se enquadra numa disposição espiritual, que fecundada e disseminada no ocidente, se afirma, a dada altura, como sua imagem de marca?Como que a confirmá-lo, aí temos todo um conjunto de recursos linguísticos (juntamente com a língua portuguesa, intersectam-se irreverentemente registos da língua ronga e inglesa), estilísticos (a prevalência da adjectivação, da anáfora, da aliteração, da parataxe, da exclamação) e temáticos (a revolta, a valorização racial e cultural, a infância, a esperança, a angústia, a injustiça) que nos fazem claramente perceber que, por detrás da voz enunciatória de cada um dos poemas de Grito Negro, se insinua a consciência de uma subjectividade ou dilacerada:
Nossa voz gemendo, sacudindo sacas imundas
nossa voz gorda de miséria,
nossa voz arrastando grilhetas (Nossa Voz)
ou indignada: “Nós somos sombras para os vossos olhos, somos fantasmas”, Passe, inconformada :
Queria derrubar meu jazigo de alvenaria
Queria descer aos trilhos lamacentos,

Queria sentir o aguilhão da mesma revolta,
Queria sentir esse gosto indefinível de luta,
Queria sofrer e gemer e lutar
Para conquistar a Vida!  (Poema)
ou nostálgica :
Ah, meus companheiros me semearam esta insatisfação
dia-a-dia mais insatisfeita.
Eles me encheram a infância do sol que brilhou
no dia em que nasci. (Poema da Infância Distante)
ou, então, confiante: “Por isso eu CREIO que um dia / o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico.”, etc.
Tal como a maior parte dos escritores africanos da sua época – como o serão, afinal, os das épocas subsequentes, conhecido e reconhecido que os períodos pós-independentistas, de estabelecimento das democracias e da mundialização do planeta continuam a exigir que cada vez mais as vozes dos escritores em África não emudeçam -, a voz poética de Noémia de Sousa transcende, em largos momentos, os limites egotistas,  espaciais e temporais, instituindo-se, de certo modo, como uma voz de aspiração plural e universalista. Para Pires Laranjeira (1995 : 499), trata-se da “ânsia de absoluto, a mística de fusão com o povo e o Continente”.Concorrem para tal aspiração, o recurso à apóstrofe afectiva (“E então, / tua voz, minha irmã americana, / veio do ar, do nada, nascida da própria escuridão...”, A Billie Hollyday, Cantora), ao sentimento colectivo (“E agora, sem desespero nem esperança, / seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade.., Moças das Docas), ao culto da utopia (Poema para um Amor Futuro, Se este Poema fosse ...), bem como aos mitos da liberdade, da igualdade, da fraternidade e do progresso.Estamos, por conseguinte, perante o pendor assumidamente não-ensimesmado, não umbilicalista da escrita poética de Noémia. O sujeito parece emergir aí como efeito do seu confronto com o que lhe é exterior, desencadeando toda uma corrente de emotividade responsável pelas características declamatórias e virtuosistas desta poesia. A propósito, Ana  Mafalda Leite (1998 : 107) considera que “toda a poesia da autora aspira a ser vocal, escapando assim ao exílio silencioso da escrita”.E as encenações dialógicas que aí se assistem, se é verdade que contribuem para a carnavalização da linguagem, segundo Bakhtine, concorrem, por outro lado, para o assomar de uma subjectividade que, inconformada, atravessa e unifica estilística e estruturalmente os poemas de “Sangue Negro”.É, pois, na atmosfera ritualizante e dionisíaca do poema que a escrita de Noémia de Sousa, cantante e compassada, num ritmo por vezes inebriante, fustiga:
Ó carrasco de olhos tortos
de dentes afiados de antropófago
e brutas mãos de orango (Poema)
ou venera
Ó minha Mãe África, ngoma pagã,
escrava sensual,
mítica, sortílega - perdoa! (“Sangue Negro”)
Divindade maior desta cosmologia é a liberdade ansiada (e ensaiada) e o exercício da palavra como instrumento consciencializador e agonístico. E a expressão arrebatada se, por um lado, subjectiviza a expressão poética em Noémia, por outro, confere-lhe uma dimensão majestática e que faz do sujeito rapsodo das dores, dos anseios, da revolta, das resignações e dos mitos dos flagelados irmanados por um destino comum determinado pela ocupação colonial.Enquanto voz da Negritude, a voz de Noémia não corresponde necessariamente à exaltação de um narcisismo gratuito de ser negro, mas trata-se da projecção do ser negro enquanto objecto da sujeição económica, política, cultural ou racial. E a história vai nos ensinando que as duas condições (a biológica e a instituída) se ligam de forma perversa e tautológica. Como diria Fanon, é-se negro porque se é dominado e é-se dominado porque se é negro.Entretanto, traduzindo um claro cepticismo face às estratégias adoptadas pelo movimento da Negritude, a partir dos anos 30, Wole Soyinka defendia que um tigre não proclama a sua tigritude, mas ataca. Isto é, o autor nigeriano interpretava essa atitude própria das franjas de africanos que, em contacto com a cultura e a civilização ocidentais, desenvolviam uma indisfarçável e sofrida crise de identidade. Este era um facto que, do seu ponto de vista, não parecia afectar a maioria do povo africano que, por isso mesmo, não sentia necessidade de provar o valor da raça e da cultura. E a poesia de Noémia de Sousa é, nesse aspecto, paradigmática.O pendor apelativo e messiânico que caracteriza o seu verso, a exaltação dos valores negro-africanos, o afrontamento corrosivo às imagens estereotipadas do europeu sobre os africanos e a (re)constituição da sua própria imagem identitária são algumas das marcas mais evidentes do alinhamento estético da escrita da Noémia que, no essencial, reivindica  um profundo e ilimitado sentido humanista.Face à conformação narrativa que caracteriza a poesia de Noémia de Sousa (tal como a de Craveirinha), e a constituição proléptica e profética da ideia de nação, estamos, por conseguinte, perante uma escrita que faz depender essa nação ideada à forma como a própria poesia se constrói. Isto,  em função, portanto, de uma reverbativa dimensão estética, ética, cultural e civilizacional.Estrutura político-cultural em gestação, ou, simplesmente formação discursiva, segundo Foucault, a nação decorre de uma recriação mítica que faz apelo aos valores de raça, geografia, história, tradição ou língua. E é aí, entre a sacralização da ancestralidade e a reiteração enunciativa dos valores acima mencionados, isto é, entre aquilo que Homi Bhabha (1995) distingue como pedagógico e como performativo, é que a ideia de nação adquire, em Noémia, uma materialidade  e uma arquitectura singulares.Voluptuosa, a poesia de Noémia celebra a própria poesia naquilo que ela significa em termos de melodia, ritmo,
E os corpos surgiram vitoriosos,
sambando e chispando,
dançando, dançando ... (Samba)
e sensações
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá o pão! (Súplica)
E é na forma exuberante como se (re)apropria do mundo que a envolve e do que flui no interior, quer do sujeito individual quer do sujeito colectivo, que o “género Noémia de Sousa” se vai definindo. Instituindo uma temporalidade própria e muito marcada - passado gratificante, presente sofrido, futuro optimista -, Grito Negro inscreve nos interstícios de cada verso o seu segmento eventualmente mais emblemático e controverso: um intenso clamor que prenuncia um silêncio confrangedor.Se, por um lado, com o olhar centrado na infância reconstitui-se idílica e feericamente o Mito da Idade de Ouro, ou do Paraíso Perdido, por outro, ao projectar-se utopicamente para o futuro, morada da solução harmoniosa e palingenética, esta poesia tem, no presente, um espaço enunciatório nuclear, ao mesmo tempo de padecimento, mas também propiciatório e invocador do que existe, quer no foro privado, quer como bem colectivo.Atentando, entretanto, na forma como o futuro e o presente condicionam a voz poética que se configura como consciência plural, obviamente com um sentido colectivo e partilhado, é, contudo, na sua relação com o passado que tudo se radicaliza em relação à forma como essa mesma voz se apresenta. Trata-se, pois, de uma subjectividade envolta num manto de uma nostalgia vibrante, emergindo altiva no exercício reconstituinte conduzido pela memória:
- Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada,
Solta e feliz:
meninos negros e mulatos, brancos e indianos,
[...]
Ah, meus companheiros acocorados na roda maravilhada
e boquiaberta de “Karingana ua karingana”
das histórias da cocuana do Maputo (Poema da Infância Distante)
Afinal, como diria Levinas, é pela memória que o sujeito se funda a posteriori, retroactivamente. Isto é, assume hoje o que, no passado absoluto da origem, não tinha sujeito para ser recebido e que, a partir de então, pesava como uma fatalidade:
Quando eu nasci... [...]
No meio desta calma fui lançada ao mundo,
Já com meu estigma.
Ainda, na percepção do filósofo franco-lituano, é a memória que realiza a impossibilidade e que, como inversão do tempo histórico, se firma como a essência da interioridade. Neste particular, a poesia de Noémia desfaz as asserções totalitárias que fazem dela pura expressão de uma alma colectiva onde a subjectividade está ausente. Subjectividade que se revê e se revitaliza na plenitude da sua condição feminina.Para todos os efeitos, na sua salteante dialéctica com a temporalidade, a voz de Grito Negro é uma voz que se propaga sonora, profetizando o seu próprio apagamento. Isto é, a utopia, em toda a sua imprevisibilidade, que se torna silêncio e morte. Paradoxalmente, ou não, é justamente aí, ou a partir daí, porque se transcende, que a poesia de Noémia de Sousa assume a sua condição de imortalidade: a crença, mesmo que irreligiosa, na palavra que se diz, que sonha e faz sonhar, que dói e faz doer, que reflecte e faz reflectir, mas que liberta mesmo que na contingente e precária duração de um grito.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Futebol e Colonialismo

À primeira vista, este trabalho é sobre futebol e o modo como era praticado em Lourenço Marques – a maior cidade e centro administrativo da colónia portuguesa de Moçambique – na primeira metade do século XX. O trabalho interpreta o desenvolvimento do jogo, desde a fundação dos primeiros clubes formados por expatriados ingleses, passando pela organização em Moçambique de filiais de clubes metropolitanos como o Sporting e o Benfica, até à abertura deste clubes a membros de uma elite africana, a maior parte deles mestiços, e à criação da Associação de Futebol Africana, com jogadores, na sua maioria, provenientes das classes trabalhadoras africanas que viviam na periferia pobre da cidade onde estes jogos decorriam.
Os historiadores do futebol irão, com certeza, ficar interessados em aprender algo mais sobre o contexto que produziu talentos como Mário Coluna ou Eusébio, ambos figuras maiores do futebol europeu em meados do século XX. E a reivindicação de que o futebol é um – senão o – desporto mundial será apenas reforçada pelas descrições do entusiasmo com que os moçambicanos, de diferentes origens, abraçaram o jogo há tantos anos. O trabalho de Nuno Domingos vai, no entanto, muito além de uma narrativa histórica da disseminação de um jogo europeu (na sua versão moderna) numa colónia africana. A sua “grande questão” é a relação ente o colonizador e o colonizado concebida desde o jogo de futebol.
Deste modo, esta investigação baseia-se e dá continuidade a uma tradição das ciências sociais que tem vindo a produzir, no domínio dos estudos africanos, resultados relevantes nas últimas décadas: o estudo da “cultura popular”. Até à data, os estudos da cultura popular africana focaram-se sobretudo nas artes, na escultura, na pintura, na música, na dança, na literatura, no cinema e no teatro. Estes trabalhos tornaram visível a interacção dinâmica entre tradição e modernidade no continente africano, destacando os meios pelos quais as formas africanas de expressão se articularam com a experiência vivida dos processos históricos que ligaram o continente com um mundo mais largo, do colonialismo até ao nacionalismo revolucionário, ao socialismo e ao neo-liberalismo. Através destes processos, os africanos adoptaram e adaptaram géneros expressivos para os seus próprios fins e, como este trabalho demonstra, contribuíram profundamente para as trajectórias globais destas diversas formas.
O próprio Nuno Domingos adopta e adapta os estudos da “cultura popular” para perseguir os seus objectivos neste trabalho. Fazendo-o, estende a abordagem a uma área ignorada com demasiada frequência por historiadores e cientistas sociais, o desporto. Ao observar a forma como o futebol era jogado no Moçambique urbano por intermédio do enquadramento conceptual do género põe de parte a asserção  de que o jogo – definido como é por um conjunto de regras – viaja inalterado de um contexto social para o outro. Tal como as artes, o trabalho mostra-nos que o futebol foi transformado por aqueles que o praticaram em locais como o Moçambique colonial. Mas não é a transformação do jogo em si mesma que mais interessa a Nuno Domingos. Ele está, sobretudo, mais interessado nas “grandes questões”, isto é, em saber como o jogo transformou, ou não, aqueles que jogavam neste contexto colonial, e de como foram, ou não, capazes de usar o jogo para transformar o mundo em que viviam.
O pouco que se tem escrito sobre desporto em contexto colonial tende a focar-se no seu uso como instrumento de poder. Ao jogar – ou sendo compelidos a jogar – os jogos dos colonizadores, defende-se que os corpos dos colonizados foram disciplinados e as suas mentes orientadas em direcção a novas ideias tais como a “competição estruturada”, o “fair play” e o “Estado de direito”. O trabalho de Nuno Domingos demonstra claramente que, em certa medida, o regime colonial português concebeu o desporto, nomeadamente o futebol, como uma forma de “civilizar”. Demonstra também, no entanto, que este não foi um projecto inteiramente bem sucedido. O modo como os moçambicanos urbanos jogaram futebol permitiu-lhes exprimir e reforçar as suas formas de estar no mundo, em parte para se transformarem a si próprios, numa tentativa de acederem a um universo que quase sempre os excluía.

sábado, 19 de maio de 2012

Quem já viajou no mundo da mulher?

“Balada de amor ao vento”, da escritora Paulina Chiziane, representa um marco na literatura moçambicana. Publicado em 1990, o romance foi o primeiro no país a tematizar o quotidiano do universo feminino, evidenciando signos socioculturais que denunciam o lugar secundário reservado à mulher. Mais do que retratar a situação feminina em um Moçambique colonizado, Paulina Chiziane põe em discussão como as negociações transculturais e as mudanças de sistemas políticos apenas perpetuaram a[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 2]submissão feminina, ao mesmo tempo em que, dando voz a essa personagem marginal da história do país, contribui para a reconstrução da identidade moçambicana no período pós-colonial. Concentraremo-nos, neste estudo, em analisar tais signos e compreender como a autora os desconstrói em busca da reconfiguração da identidade nacional e da vitalização da presença feminina na construção do cenário histórico e cultural de Moçambique.
A história nos é contada pela personagem Sarnau, mulher marcada pelo amor e pelo abandono. Escrito em primeira pessoa, o romance caracteriza-se por um modo lírico de narrar, o que, segundo Inocência Mata, reforça o processo rememorativo. A narrativa tematiza a memória como veículo de revitalização identitária, no caso de Balada de amor ao vento, “uma memória individual que se confronta com os ditames de uma sociedade tradicionalista” (MATA, 2000, p. 136). A personagem inicia a história já envelhecida, saudosa dos tempos de juventude, contrapondo-os com o seu presente, miserável. Ao questionar-se sobre a existência ou não do amor, Sarnau faz uma comparação da mulher com a terra, convidando o leitor a conhecer o universo feminino:
Tenho uma filha crescida que ainda estuda embora já tenha estudado muito. Um dia disse-me que a terra é redonda. Por fora é toda verde e lá no fundo tem um centro vermelho. Como o melão. Que a terra é a mãe da natureza e tudo suporta para parir a vida. Como a mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silêncio da terra. Na amargura suave segrega um líquido triste e viscoso como o melão.
Quem já viajou no mundo da mulher? Quem ainda não foi, que vá. Basta dar um golpe profundo, profundo, que do centro vermelho explodirá um fogo mesmo igual à erupção de um vulcão (CHIZIANE, 2003, p.12).
A imagem comparativa da mulher com a terra, antes quase exclusivamente vinculada ao projecto nacionalista, vem agora carregada de subjectividade. É sobre a condição feminina no que diz respeito ao casamento, à poligamia, ao adultério que [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 ] Estudos (1) p. 3]Paulina se põe a tratar. Com isso, uma personagem antes ignorada pelo discurso dominante ganha voz, reinscrevendo a história sob outra óptica. O foco agora são as relações de género estabelecidas no interior da sociedade, na busca de uma tomada de consciência de que essas relações desiguais são construídas socialmente. Ana Mafalda Leite (2003, p.78), tratando da relação entre questões coloniais e questões patriarcais, afirma que o tratamento dos temas sobre a mulher pressupõe uma visão alternativa e crítica em relação à visão construída por escritores-homens, sendo que a narrativa de género estabelece um diálogo crítico com a narrativa centralizada numa tradição masculina, permitindo, também, um alargamento temático, a partir de dentro, criando uma abertura no cânone literário, em formação. Por sua experiência particular, Sarnau mostra-nos como a mulher é criada para servir ao homem, para suportar sua indiferença, sua agressividade, sua rejeição, como se isso fosse um fardo natural o qual a mulher deve carregar e aceitar. Em várias passagens do romance, a personagem narra não apenas os fatos que comprovam a desigualdade de género, mas também enfatiza o discurso produzido pelos mais velhos e, em especial, pelas mulheres. Ainda que seja a mais atingida com essas práticas, destaca-se, assim, que a mulher é a principal difusora dessa ideologia. Afinal, é a ela atribuída a responsabilidade pela criação dos filhos. Em razão do seu casamento, Sarnau participa de um ritual de preparação no qual as mulheres de sua família juntam-se para dar-lhe o que a personagem chama de “conselhos loucos”:As minhas mães, tias, avós, fecharam-me há uma semana nesta palhota tão quente e dizem que me preparam para o matrimónio. Falam do amor com os olhos embaciados, falam da vida com os corações dilacerados, falam do homem pelas chagas desferidas no corpo e na alma durante séculos, Sarnau, fecha a tua boca, esconde o teu sofrimento quando o homem dormir com a tua irmã mais nova[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 4]mesmo na tua presença, fecha os olhos e não chores porque o homem não foi feito para uma só mulher (CHIZIANE, 2003, p. 44).
A mulher traz no corpo e na alma as marcas dessa submissão secular, tendo-lhe sido ensinada como suportar tais açoites. Embevecida pelo fato de casar-se com o futuro rei da sua tribo, Sarnau demora a compreender o que significam tais palavras, questionando-se pela insistência dos ensinamentos: “Mas por que a tristeza? Não será o casamento um acontecimento feliz?” (CHIZIANE, 2003, p. 46). Quando ela própria experiência essas práticas, Sarnau rememora os ensinamentos na busca de suportar, resignadamente, a sua condição. Ao ver o marido com outra em sua cama, corre para aquecer a água do banho do casal e ao ser chamada, retorna pondo-se de joelhos perante o “soberano”, baixando os olhos “como manda a tradição”:
- A água está pronta?
- Sim, pai.
- Hum, parece que choraste. Morreu alguém?
Arremessou-me um violento pontapé no traseiro que me deixou estatelada no chão.
Minutos depois voltei à posição inicial. Enviou-me uma bofetada impiedosa que fez saltar um dente [...] (CHIZIANE, 2003, p. 56).
No artigo “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”, Patrícia Rainho e Solange Silva (2007,p.523) afirmam que em Balada de amor ao vento não há questionamento da condição da mulher na sociedade moçambicana, restringindo-se a uma escrita no feminino:... a personagem [Sarnau] não se questiona quanto a certos valores instituídos e se estes limitam ou não as suas escolhas enquanto mulher. Existe apenas a narração de toda uma vida no feminino, através de Sarnau, que é preenchida com o legado [Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 5]cultural da oratura moçambicana e um ‘passeio’ pela vida cultural de Moçambique em tempo colonial através daquela personagem feminina, criada por Paulina Chiziane.
Definir toda a condição social apresentada no referido livro como um passeio pela vida cultural de Moçambique parece extremado reducionismo quanto ao discurso construído em Balada de amor ao vento. Se em nível do enunciado Sarnau não questiona explicitamente os valores instituídos pela sociedade na qual está inserida, em nível da enunciação, podemos, sim, identificar a discussão da submissão feminina, o modo como tanto a poligamia como a monogamia submetem a mulher aos interesses masculinos e aos da sociedade em geral, a influência dos mais velhos na vida dos mais novos, a questão da assimilação, a negociação estabelecida entre a cultura tradicional e os diferentes discursos históricos conservando o controle patriarcal exercido sobre as mulheres.
O fato de a narradora ser uma personagem iletrada que vive em um território ainda colonizado também precisa ser considerado. Além do mais, as escolhas narrativas não podem ser pensadas ingenuamente. O tom irónico e satírico utilizado pela autora para narrar os acontecimentos dão a medida da consciência crítica dessas escolhas. O trecho citado acima, por exemplo, em que o marido utiliza-se de ironia para debochar da mulher por seu suposto ciúme, seguido de um pontapé no “traseiro” e uma “bofetada impiedosa” que lhe faz “saltar um dente” não pode ser encarado como simples narração de uma vida no feminino, é também denúncia da realidade da mulher em África. O próprio questionamento que Sarnau se faz sobre o casamento ser ou não um acontecimento feliz aponta para a reflexão sobre a insatisfação da mulher, sobre a desigualdade da relação nessa instituição, além de outros momentos presentes ao longo do romance que despertam tais discussões. Há várias passagens em que a personagem[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 6]se enxerga como uma mercadoria. Sarnau assim descreve o momento da negociação do seu lobolo, embalado pelo mugir das trinta e seis vacas que constituiu o seu pagamento:“[...] Fazem-se cumprimentos e discursos; dinheiros tilintam. Coloca-se na esteira a cabaça de rapé e o pano vermelho; exibem-se peças de vestuário, pulseiras, colares, meu Deus isto é uma feira, eu estou à venda” (CHIZIANE, 2003, p. 38). O discurso de uma de suas sogras também surpreende, com um tom que desumaniza as esposas no casamento polígamo: “[...] Nós estamos aqui a mais, para aumentar o número de cabeças neste curral, e dar o nosso esforço nas machambas, apanhar com os feitiços das outras, o que é que nós somos?” (CHIZIANE, 2003, p. 53). Porém, não é só na relação poligâmica que a mulher sofre. Sarnau também se torna vítima da monogamia.
No início da sua juventude, apaixona-se por Mwando, que ela diz ser “um rapaz diferente, fala bem, conversa bem e tem cá umas maneiras!...” (CHIZIANE, 2003, p.15). Mwando tem, na verdade, características de um assimilado, estuda para formar-se padre e, como cristão, defende a monogamia. Ambos se apaixonam e vivem um romance, mas Mwando deixa-a para estabelecer um casamento monogâmico com Sumbi, mesmo ao saber que Sarnau encontrava-se grávida. Já na sua maturidade, após ter abandonado seu marido polígamo e ser deixada pela segunda vez por Mwando, Sarnau engravida de outro homem que também não reconhece o filho por se dizer cristão: Sou tão feliz com os meus dois filhinhos. O Joãozinho também não tem pai. O homem soube encher-me a barriga para abandonar-me logo em seguida. O pai afasta-o da sua mesa, não o deixa conviver com os outros irmãos, diz que é por ele ser casado e para mais não fica bem a um cristão dar a entender que tem filhos por aí. Mwando também é cristão, mas abandonou-me com uma criança no ventre. Ser cristão é uma coisa, mas a perversão e o afastamento dos deveres paternais porque se é cristão, é coisa que ainda não entendo bem (CHIZIANE, 2003, p. 137).[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 7]

sábado, 28 de abril de 2012

Tagumanicanave,,,

Búzi e Beira, dois dos três distritos de Sofala que já apuraram os seus representantes para a fase provincial do VII Festival Nacional da Cultura, destacam-se na competição com a cinematografia no conjunto das expressões através das quais pretendem representar Sofala em Nampula. Búzi, além da dança tradicional Mukapa, pintura, teatro, música ligeira, música tradicional e passagem de modelos, apurou para a competição, a ter lugar de 19 a 20 de Maio próximo, na cidade da Beira,  um documentário. Beira também vai concorrer na mesma categoria artística, com um trabalho  produzido pela Associção Anadjira. A sua participação compreende igualmente dança tradicional, música coral, passagem de modelos, teatro, música ligeira, poesia, gastronomia, pintura, humor, artesanato, escultura, moda, fotografia e música tradicional.Caia, no âmbito distrital,  foi o último distrito a escolher os seus representantes, ao realizar o festival no domingo. Este participará com as danças tradicionais utse e valimba, música coral, artes plásticas, passagem de modelos e teatro.Chemba far-se-á presente com as danças tradicionais valimba de Kuanguissana e Nhacapine, música coral e poesia.As danças que Marínguè apurou foram nhampine e valimba, e deverá apresentar também teatro e poesia.Marromeu far-se-á presente com utse de Nensa, no que diz respeito à dança tradicional, e música ligeira. Também exibirá teatro.De Cheringoma virão as danças djagadja, utse e massesseto. O distrito apresentará também teatro, gastronomia, artesanato, fotografia, poesia e humor.Muanza apresentará apenas duas expressões, nomeadamente dança (chicuzire e utse) e música ligeira.O distrito de Gorongosa apurou as danças tradicionais utse, Golomondo e Mapaza, para além de que tocará Valimba. Trará ainda música ligeira, poesia e teatro.Nhamatanda terá como pratos fortes a dança ndhocodho de Lamego, passagem de modelo, teatro, gastronomia, música ligeira e escultura, e o distrito de Muanza apurou também as danças Chicuzire e utse, e participará ainda com a expressão de música ligeira.De  Machanga vem a dança Semba, teatro, humor e poesia.  Chibabava far-se-á presente com dança makwai, música tradicional, teatro, artesanato e música ligeira.O distrito do Dondo levará consigo as danças tradicionais utse, xigubo e valimba, para além de música ligeira e escultura.A cidade da Beira, que irá acolher a fase provincial do VII Festival Nacional de Cultura em Sofala, é a que participará com maior número de expressões nesta etapa. Apurou três grupos nas categorias de dança tradicional, nomeadamente Tagumanicanave, Malelambeu e Alto da Manga, que dançarão utse, ndhocodho, entre outros estilos. Foram apurados ainda grupos de música coral, teatro, passagem de modelo, música ligeira, poesia, gastronomia, pintura, humor, artesanato, escultura, estilista, fotografia, filme e música tradicional.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

“koisan”

Na tentativa de controlar a pressão vinda do intestino grosso, correu como uma légua para o local onde se marca cantos e, sem tempo de se cobrir com a capulana, abriu as pernas e, sem ajoelhar, baixou a saia do guarda-roupa e “zás”, libertou-se do inferno natural e nem teve tempo de se desembaraçar da sujeira. O público festejou.
Estávamos numa missão atípica, de levar as populações à importância de preservar o meio ambiente como um dos recursos vitais para o desenvolvimento sustentável de Moçambique. A caminhada já tinha passado por várias províncias desta Pérola do Índico, a terra de gente pacífica, de homens rodeados de paisagens belas, praias intermináveis, floresta em constante devastação, assim como pelo “explorador” que o recebemos de mãos abertas.
Nessa tarde de calor intenso, com os olhos vermelhos pela dureza do sol, pisámos pela terceira vez o campo do Ferroviário de Gondola, província de Manica, uma infra-estrutura que se degrada a olhos vistos e todos, de barriga cheia, reclamamos falta de campos. Que desperdício!
Dizia que nos encontrávamos naquele campo que outrora foi um cartão de visita, e as bancadas estavam superlotadas de gente ávida em ver os corpos a esmolecer ao som dos batuques e ritmos misturados, que representavam a dimensão cultural da pátria amada.
De tangas e saias meticulosamente preparadas pelas mãos de Domingos Mbochana e seus pares, entrámos num palco improvisado para chamar o povo de Gondola à atenção com a natureza, com a coreografia “Árvore Sagrada”, obra cozida artisticamente pelo “Feiticeiro Makonde”, Casimiro Nhussi.
Os tambores rufaram na imensidão da tarde gloriosa, cuja afinação tocou nos corações e nas almas da gente que lotava a plateia. Os cantares dos bailarinos atingiram os céus, que até fizeram a “Cabeça do Velho” erguer os tímpanos e pôr o nariz a dançar Makwai, no seu repouso estático. O espectáculo ia a meio, com o público no silêncio da tarde quente, onde a força dos passos executados pelos bailarinos destruía as latrinas precárias nas redondezas do campo, quando, de repente, o meu “sobrinho”, que se encontrava no palco a representar com perícia o corpo em movimentos tradicionais, saiu do palco e desatou a correr para o centro do terreno. Os colegas que se encontravam no palco em missão divina ficaram atónicos, mas sem parar de dançar. O público, esse, começou a bater palmas efusivamente, para o gáudio dos bailarinos, pois pensavam que aquela ovação fosse para eles. Puro engano!
O meu “sobrinho”, baixinho que até parecia membro da etnia “koisan”, continuava com a sua correria. chegou ao centro do campo, parou, olhou nos lados, qual Messi quando festeja mais um golo, ajoelhou-se, fez sinal de quem quisesse tirar as saias do guarda-roupa da coreografia, desistiu. Correu de novo para uma das balizas do campo, chegou à meia-lua do rectângulo do jogo, parou de novo, voltou a reparar para os lados, tinha colocado as mãos nas suas nádegas. Deu um sinal a um dos colegas, mas ninguém deu atenção, os bailarinos estavam concentrados em “destruir” o relvado do campo de futebol, com as suas “excentricidades” artísticas e, também, construir um mundo verde e puro. Numa correria que só podia ser ultrapassada pelo jamaicano Usain Bolt, o “sobrinho” voltou ao palco, levou uma capulana pertencente a uma das colegas, de novo fez-se ao lado oposto do palco. Na corrida, amarrava a capulana como se de um “mulumuzana” tratasse. O público levantou-se das bancadas, deixou os bailarinos a dançarem para o vazio e seguiu o espectáculo “solitário” do meu “sobrinho”.
Quando chegou à linha lateral, procurou pelos arbustos, nada havia, aproximou-se da árvore que oferecia sombra aos espectadores, que não conseguiram “vaga” nas bancadas, o local não era seguro. O meu “sobrinho” dançava sozinho no palco do sofrimento. A sua barriga tornava-se tumefacto pelo esforço que fazia para conter a ira da convulsão estomacal. Numa decisão cirúrgica, parou diante do público “faminto” em absorver a nova proposta do espectáculo e, perante o olhar “feliz” do povo, deu umas fintas espectaculares, driblou o seu próprio destino, tentou passar a “bola” ao colega ninguém, mas sem resultado. Na tentativa de controlar a pressão vinda do intestino grosso, correu como uma légua para o local onde se marca cantos e, sem tempo de se cobrir com a capulana, abriu as pernas e, sem ajoelhar, baixou a saia do guarda-roupa e “zás”, libertou-se do inferno natural e nem teve tempo de se desembaraçar da sujeira. O público festejou. O “sobrinho” anuiu com os braços no ar, era o “rei” da tarde.
Depois do alívio, o “sobrinho” voltou ao palco e entrou na parte final da espectáculo e os espectadores vibraram, os bailarinos ganharam outra adrenalina, mas o cheiro nauseabundo que inundava o palco fez com que todos artistas colocassem as mãos nas narinas e gritassem como se fosse o princípio da morte. Na apoteose, o público invadiu o palco para pedir autógrafos ao “Messi da dança” e em todas a assinaturas escreveu: a força da dança em tarde de sol quente.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

“O Espelho da Vida”

“A opção pelo colectivo tem inúmeros fundamentos. O primeiro deles é o facto de o cinema ser uma arte absolutamente colectiva, ao contrário de inúmeras outras, como literatura, pintura, escultura, forjadas em exercícios solitários”O título para esta coluna ocorreu-me ao assistir a uma entrevista com o cineasta Manuel de Oliveira, há alguns dias, num canal da tv brasileira.Nela, ele definia cinema com esta frase simples, mas contundente: “ cinema é o espelho da vida”. Possivelmente outros já o definiram de uma forma semelhante. Poucas horas antes, eu havia dado uma entrevista para o programa de Celso Domingos na STV, que este conclui dizendo o mesmo, embora com palavras diferentes. No cinema, para além das vivências dos seus autores, se reflete a vida de todos nós, o que os homens fizeram, fazem ou irão fazer. É nisto que reside a força da mais recente das artes, que conjuga realidade e ficção, que congrega teatro, literatura e música.A coincidência destas definições, num mesmo dia, me emocionou e me fez pensar com mais clareza no que devia constituir esta coluna sobre cinema.A priori, estava acertado com os editores que seria um trabalho colectivo, assumido por um grupo de cineastas moçambicanos com uma história comum e pontos de vista convergentes, sobre a produção nacional e alguma produção internacional. Trata-se de profissionais que há trinta anos actuam juntos, com os seus nomes a compartilharem os genéricos de inúmeros filmes.A opção pelo colectivo tem inúmeros fundamentos. O primeiro deles é o facto de o cinema ser uma arte absolutamente colectiva, ao contrário de inúmeras outras, como literatura, pintura, escultura, forjadas em exercícios solitários. A segunda, decorrente desta, é que se pode dar testemunhos diferentes sobre uma mesma obra em que se participa, o que enriquece a coluna e abre espaço para um debate criativo que tanta falta faz aqui, na nossa área. Não havendo em Moçambique uma crítica especializada em cinema, toda a menção a filmes produzidos aqui ou sobre as produções internacionais, de valor social, cultural ou artístico, se resume a pequenas notas na imprensa sobre os seus lançamentos ou entrevistas genéricas com os realizadores locais a tocarem normalmente na desgastada tecla das nossas dificuldades de cada dia.Nesta coluna não pretendemos assumir o papel de críticos cinematográficos, para o qual não estamos qualificados. Nos assumimos exclusivamente como cineastas do Sul e vamos falar do nosso cinema, da sua história e dos novos filmes, como cineastas envolvidos, como testemunhas, cronistas de “making off”. Vamos falar das obras mas também do que não se vê no ecrã, daquilo que faz parte de uma filmagem, acidentes, incidentes, por vezes cómicos e até ridículos. Destas e de várias outras pequenas coisas que fazem de um filme um “espelho da vida”.Em Moçambique, excepção para o que se pode ver no Dockanema, tem-se pouco acesso actualizado às novas produções internacionais de interesse, aquilo a que chamamos CINEMA, em oposição às produções de carácter puramente comercial, nulas, que muitas vezes degradam a essência do homem, associando-o a uma imagem de violência e instintos básicos. No entanto, vamos trazer informações sobre aquilo a que temos acesso em festivais internacionais, nos quais a produção moçambicana ocupa um espaço cativo. E vamos ter a contribuição de um integrante do “colectivo” baseado em Lisboa.

Isabel Noronha, a única cineasta moçambicana com uma produção regular e uma participação activa no cinema nacional faz parte do que se pode chamar de segunda geração do cinema moçambicano, pós-Kuxa-Kanema, mas que ainda deu os seus primeiros passos nos anos de ouro do INC. Fez uma pausa para se formar em Psicologia e voltou ao activo, já há alguns tempos, com a realização de documentários, docu-dramas, experiências de linguagem mista de documentário e animação que têm constituído algo novo no cenário nacional. Vai abordar estas “pesquisas” de linguagem para falar de questões sociais actuais e de um tipo de documentário marcado pela sua formação em Psicologia.Gabriel Mondlane, cronista total do nosso quotidiano cinematográfico, das “nossas insuficiências”. Começou no cinema de para quedas, a comemorar a Independência, e fincou, solidamente, os pés nesta terra de fantasia e realidade absoluta.
Camilo de Sousa, antigo combatente da Luta de Libertação Nacional capturado pelo cinema. Já vivia nele mesmo antes de ter entrado, também no fim dos anos setenta. Vai debruçar-se sobre memória, cinema e realidade, análises sobre os “filmes da periferia”.Luis Carlos Patraquim, o poeta do cinema nacional, escritor e narrador dos anos verdes, rapidamente amadurecidos, da aventura comum: os nossos olhos e corações no Norte, com incursões no cinema nacional.Por último, quem assina esta nossa primeira colaboração sobre cinema no “O Pais Fim de Semana”, já apresentado previamente pelos seus filmes, para quem os viu.
Licínio de Azevedo