Palma.
Macomia, Mocímboa da Praia, Nangade, Muidumbe.
Os
bárbaros e selváticos ataques em Cabo Delgado fizeram-me insónias, logo a mim
que mal pouso a cabeça na almofada, adormeço.
Vagueava
o meu pensamento sonolento por entre as sombras do quarto às 4 horas da
madrugada, quando subitamente a minha mente é assaltada por poetas e prosadores.
Poetas? Estranho, visto que a minha relação com a poesia é idêntica à que tenho
com o vinho. «Heresia!» clamam os literatos e os enófilos.
Como
faço para apreciar ambos? Simples! Pergunto-me que sensações me provocam? O que
me fazem sentir? Gosto ou não gosto? E pronto!
Todo
este intróito para referir que Galeano foi o primeiro dos invasores, o qual
valendo-se de Birri discorria sobre a utopia. «Então para que serve a
utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.» Brilhante!
Mas… caminhar
para onde?
Alguém
me sopra ao ouvido «para a frente é que é o caminho». Pois… e se à
frente estiver um precipício? Depois é, a minha frente ou a tua frente? Para
que ponto cardeal estás virado?
Carrol
responde sarcasticamente. «Estás a fazer a mesma pergunta que a Alice? Olha
que a resposta é a mesma».
«Gato
Cheshire… pode me dizer qual o caminho que eu devo tomar?
Isso
depende muito do lugar para onde você quer ir – disse o Gato.
Eu não
sei para onde ir! – disse Alice.
Se você
não sabe para onde ir, qualquer caminho serve.»
Sinto
então uma mão carinhosa no ombro e a voz de José Régio dizendo: «Não ligues,
faz como eu».
«Quando
me dizem: “vem por aqui”!
Eu
olho-os com olhos lassos,
(Há,
nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo
os braços,
E nunca
vou por ali…
Não sei
para onde vou,
Não sei
para onde vou
Sei que
não vou por aí!»
Explodem-me
entretanto pensamentos perturbadores. E se afinal a utopia tiver sido mais uma
distopia, com os seus julgamentos sumários, com os fuzilamentos em praça
pública e o terror da reeducação? Mais os assassinatos e prisões de
jornalistas? E a instrumentalização do patriotismo como forma de exclusão?
Escarnece
George Orwell: «Big Brother is watching you» e «Todos os animais são
iguais, mas uns são mais iguais que outros».
E as
nossas cumplicidades silenciosas, encapuçadas em fé cega em utopias sonhadas
como realizáveis e filtradas pelos nossos olhos trópico-ocidentalizados
marejados de boas intenções de princípios cristãos não assumidos e de culpas
retroactivas não nossas?
Kafka
acena-me de longe com “O Processo”. Quer ele assombrar-me com pesadelos
surreais?
Se
refutarmos crenças e dogmas dos tempos de antanho perdemo-nos de nós próprios?
Responde
Jorge Rebelo: «Ora chegou um tempo…»
«Tenho
de novo que aprender a
perturbar o universo, a recusar o
aconchego dos palácios, a
partilhar com os deserdados o
anseio da virtude.
O outro
Eu me ensinara.»
E se a
guerra tiver sido mesmo escolhida pelo descaso dado aos inúmeros sinais de
insatisfação e de revolta com a injusta distribuição e pérfida ostentação de
riqueza?
Porquê?
Clama Noémia de Sousa, com palavras vindas do passado e tornadas tão presentes:
«Por
que é que as acácias de repente floriram
flores de sangue?
Por que
é que as noites já não são calmas e doces, por
que são agora carregadas de electricidade e longas, longas?
Ah, por
que é que os negros já não gemem, noite
fora,
Por que
é que os negros gritam, gritam à
luz do dia?»
Vagueio
por entre os silêncios atrapalhados e a auto-estima e auto-contentamento
bafientos de quem eu esperava bem mais e tento escutar os tambores silenciados
do mapiko em Cabo Delgado. Repentinamente, ouço Craveirinha: «Convoca os
espíritos e acompanha-me no grito».
«Tambor
está velho de gritar
Oh
velho Deus dos homens deixa-me
ser tambor corpo e alma só tambor só tambor gritando na noite
quente dos trópicos.
Eu
Só
tambor rebentando o silêncio amargo de [Cabo Delgado]
Só
tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só
tambor perdido na escuridão da noite perdida.»
Não
consigo dormir, às voltas na cama e com vários nós na cabeça.
Ressoa
incessantemente no meu pensamento a frase dramática da nossa vida: «Valeu a
pena?»
Escuto
então Pessoa:
«Valeu
a pena? Tudo vale a pena
Se a
alma não é pequena.
Quem
quer passar além do Bojador
Tem que
passar além da dor.»
E,
assim, finalmente adormeço.
Por: José Paulo Pinto Lobo