sábado, 24 de novembro de 2018

Poemas para Brincar


Related imageO seu terceiro livro, “A Capoeira dos Sete Pintos” (EPM-CELP, 2018), é uma adaptação baseada no conto tradicional “O Milhafre Esfarrapado e a Galinha Costureira” (recolha que consta do livro “7 Estórias Sobre a Origem de Quem Come Quem”, pp. 47-50); e tal como o livro que lhe deu nascimento, versa sobre acordos e os efeitos da sua violação. É um livro de sonhos, um “conto de fadas” ou maravilhoso, se preferirem. A linguagem é cuidada e rica em vocábulos que poderão causar estranhamento ou curiosidade aos pequenos leitores (mortiço, aldrabas, estirada, exótica, etc.). Ainda assim, é um belo livro para iniciação à leitura.
Conheci o Celso C. Cossa (CCC) há seis anos, por intermédio de uma rede social. Colaborou na web-revista que, eu na época publicava, a Lidilisha, e foi um participante frequente dos eventos promovidos pelo Movimento Literário Kuphaluxa. Escritor experimentalista – recordo-me de um fascículo de poesia neo-concreta –, abdicou dos demais géneros literários e dedica-se, por agora, a escrever exclusivamente infanto-juvenis, “em busca da especialização”, assume ele. Começou a publicar em 2015, consequência do prémio que venceu (Prémio Nacional 25 de Maio – PAWA), e desde lá, apresentou ao público mais dois livros, incluindo um de poesia, “O Gil e a Bola Gira e Outros Poemas para Brincar” (EPM-CELP, 2016), que contém fabulosas ilustrações do versátil artista plástico e gráfico Luís Cardoso. Como testemunho da sua dedicação à literatura, CCC conta com três menções honrosas em prémios literários, duas atribuídas pelo Prémio Matilde Rosa Araújo – Trofa, Portugal (para os livros “Dandiwa – a menina que ganhou uma bolsa de estudo” e “O Sol e o Solzinho”, ambos inéditos), e a última, no Prémio Literário 10 de Novembro (“Ensaio sobre o linchamento”, também inédito). Em 2017, CCC foi a atracção especial da 1ª edição do Festival do Livro Infantil Kulemba (FLIK), realizada na cidade da Beira.
A entrevista que se segue ocorreu durante uma viagem de carro, de 4 horas, e é o prelúdio de uma série de aparições do autor com vista a apresentação do seu novo livro, “O menino que odiava números”, a ser lançado no primeiro trimestre de 2019.

Pedro Pereira Lopes (PPL): Antes de ser um escritor publicado em livro, o Celso C. Cossa aventurava-se em um pouco de tudo, poesia, crónicas, críticas literárias… Redefiniu-se? Encontrou a sua vocação?
Image result for Celso C. CossaCelso C. Cossa (CCC): Não acredito em vocação. Acredito, sim, no trabalho. “Trabalho deliberado”. Várias pesquisas relacionadas convergem ao que Anders Ericsson defende, ou seja, “não é o talento que determina o quão bom nós nos tornamos em algo, mas antes o quão duro estamos dispostos a trabalhar”. Acredito na “serendipidade”, aquela situação que a escritora Ana Maria Gonçalves usa para descrever o momento feliz que nos leva a descobrir ou encontrar alguma coisa enquanto estávamos à procura de outra, mas para qual já tínhamos que estar preparados. Portanto, ter escrito quase tudo, poesia, crónicas, críticas e por aí fora… era como estar no escuro diante de um elefante enorme como alvo, ou, na pior das hipóteses, estar sob a luz do dia tendo a minha frente uma formiga por abater. O que eu quero dizer com isso? Todo aquele que se principia na produção literária, ou se quisermos, na produção artística, dotado da parafernália requerida, tende sempre a se definir ou redefinir.

PPL: Não pretende publicar, por exemplo, os seus poemas em livro?
CCC: O poeta Paulo Leminski só acreditava na poesia e nos poetas que continuavam poesia ou poetas depois de várias décadas de terem sido gerados como tal. Todo o adolescente é um poeta (em potência). Com o desvanecer da adolescência, a cada dia que passa, vamos nos achando menos poetas… até que a fase adulta no mostra que fomos demasiado estúpidos em pensar que um dia fomos poeta, ou o contrário. Então... o escritor jamais deixa de publicar o que escreve, ou seja, o esquecimento é uma forma de publicar.

PPL: Em nota ao seu primeiro livro (“7 Estórias sobre a origem de quem come quem”), o CCC esclarece: “cada estória contada é um portal mágico que nos leva a muitas outras…”, isto porque a realidade é mais complexa?
CCC: Sem a realidade a ficção não existiria. O papel da arte, no caso, da escrita literária, é o de sugerir realidades. Seja partindo do rudimentar ao complexo, e vice-versa. A realidade é mais complexa que a ficção? Não. A ficção é apenas um espelho distorcido da realidade. Daí que faz todo o sentido que cada estória contada seja um portal mágico que nos conduz a outras.

Related imagePPL: A propósito deste livro, que lhe valeu um prémio (PAWA 2015), usa os contos tradicionais – pretensamente infanto-juvenis – para nos explicar a origem “sangrenta” da moral e da paz?
CCC: O termo certo seria sugerir e não explicar. Os professores é que explicam. Os escritores sugerem (ou pelo menos concorrem para tal). Este livro foi escrito em sete dias (a culpa é do Eduardo Quive). Para o Prémio 25 de Maio 2015. Escrevi-o baseado nas estórias que me foram contadas na meninice. Em casa, na rua e na escola. E como não há ficção que consiga um distanciamento considerável da realidade, sim, é possível que elas “tentem” explicar a origem sangrenta da moral e da paz. Ademais, estabeleceria um meio-termo entre Lucílio Manjate e José dos Remédios. O primeiro vê, nestas estórias, o quão prejudicial – moral e socialmente –, pode ser para o todo a quebra dos contratos entre as partes. Para o último, estás estórias retratam como é que as hostilidades emergem num contexto de convivência saudável.

PPL: Por falar em sugestão, em seu segundo livro, “O Gil e a Bola Gira…”, insinua, “são poemas para brincar”. Como supõe que as entidades responsáveis possam fazer este brinquedo, o livro, chegar às crianças que não vivem nas grandes cidades?
CCC: Antes de responder, gostaria de dizer que o livro “O Gil e a Bola Gira e Outros Poemas para Brincar” foi escrito durante um período em que eu esperava a chegada do meu primeiro filho, o Cossa Filho, representando aquele presente não “comprável por dinheiro”. Quanto à questão, diria que, se todos os intervenientes na formação das nossas crianças vissem o livro como um presente a oferecer – para contribuir na formação de um adulto melhor –, o livro seria subsidiado pelo governo; o livro faria nascer mais bibliotecas e livrarias; o livro lembraria aos pais e encarregados que eles querem ser comprados para que as crianças os leiam; o livro seria o destino de alguns passeios; o livro teria asas para voar até aos lugares mais improváveis deste país.


PPL: Os seus três livros publicados são dedicados aos mais novos. Tem tido algum feedback por parte da crítica e do seu público leitor?
CCC: Considero-me um escritor de estrada pequena. Mas sortudo, entretanto. Pois a estrada percorrida pela literatura infanto-juvenil, em Moçambique, não tem a distância percorrida pela “literatura para os adultos”. Nesta minha curta caminhada, consigo ouvir falar de pouquíssimos nomes que escrevem para este nicho literário (mencionados nos estudos da professora brasileira Eliane Debus); críticos literários como o Manjate e o Dos Remédios escreveram sobre as minhas narrativas; sou convidado para escolas para falar da literatura infanto-juvenil e dos meus livros; pais e encarregados de educação procuram-me para adquirirem, ou para saberem onde podem adquirir os meus livros... há muito que fazer, mas vamos fazendo aquilo que podemos.
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PPL: O mercado infanto-juvenil está em aparente crescimento no país. Multiplicam-se os autores, os livros, as apostas. Como vê este cenário?
CCC: É de pequeno que se torce o pepino. Se a leitura é importante para a formação do indivíduo, então é bom que ela seja incentivada desde a tenra idade. Fico triste quando procuro referências moçambicanas do género, e não consigo preencher uma das minhas mãos. Gostaria de ver, dentro de alguns anos, adultos falando destes novos personagens que se estão a criar com os olhos regados de lágrimas, recordando o tempo em que eram apenas um pepino por torcer. Terão referências moçambicanas, locais, africanas.

PPL: Logo, não se pode falar de tradição literária infanto-juvenil em Moçambique…
CCC: Não! Ainda não. Podemos falar de travessias de contos tradicionais ao infanto-juvenil, não de tradição. Para mim, a literatura, no caso em apreço, a infanto-juvenil, não serve para ensinar, não é didáctica. Ela deve, sim, procurar mostrar o outro lado da coisa ensinada. Ou seja, como diria o escritor Álvaro Magalhães, “desensinar”. E o carácter, quase que constante, da nossa produção pretensamente infanto-juvenil, é o de ensinar.

PPL: Chegará o dia em que, a par dos países mais desenvolvidos, a literatura infanto-juvenil será a mais produtiva no país?
CCC: Esta pergunta cairia bem a um guru. Não a mim. Mas... Se houver vontade política, é possível, e quem sabe seremos o primeiro país africano a ganhar o pequeno Nobel de literatura, o prestigiado Prémio Hans Christian Andersen.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

De gatas e a trepar as paredes


Há 31 anos, Ungulani Ba Ka Khosa estreou-se em livro, num período em que a literatura moçambicana passava, eventualmente, por um dos melhores momentos até aqui. Na década de 80, foi lançado o primeiro concurso literário do país, foi criada a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), e, enfim, foi lançada a primeira revista literária moçambicana pós-independência, a Charrua, de que o nosso escritor é co-fundador. Este foi um momento de ouro, que, inclusive, contribuiu para a afirmação de uma escrita comprometida com a estética, por nela existir, quiçá, os (des)equilíbrios cruciais à literatura.  É neste contexto de reinvenção de uma arte, num país recém-nascido, que Ba Ka Khosa ousa apresentar-se em obra, depois de muito publicar na imprensa. Nessa altura, tinha 30 anos de idade e havia vivido em todas as regiões de Moçambique.
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E então, o livro escolhido para a primeira aparição foi Ualalapi, colectânea de contos, para uns, romance, para muitos, e novela, para os mais centristas. Neste livro, um dos dois que constitui Gungunhana, obra ora lançada pela editora Kapulana, Ungulani percorre os labirintos da história, e, fugaz, aldraba a morte, retirando nela um personagem controverso (ora herói, por ter travado toda uma luta contra o regime colonial português, ora vilão, por tanto ter liderado ofensivas contra os chopes, uma etnia do Sul de Moçambique): Gungunhana/ Ngungunhane. Ao ficcionar a vida do imperador de Gaza, homem extremamente violento, Khosa constrói um cenário maquiavélico, que ao tirano permite atingir o poder sem ameaças de o perder, delegando, por isso, a morte do seu irmão, Mafemane, a Ualalapi. A partir dos conflitos, da ganância e dos jogos de interesse instituídos na narrativa, Ungulani introduz-nos no raciocínio de um ditador que, à imagem de tantos outros de terno e gravata, não medem consequências no longo percurso ao trono. Por isso, esta é uma história actual e com muitos anos de vida.
O segundo livro que compõe a obra Gungunhana é intitulado As mulheres do imperador, na qual temos um narrador didático como cicerone no prosseguimento dos caminhos trilhados pelas rainhas de Gaza, na desnecessária viagem que termina com um exílio delas na sua terra, mas longe da sua gente. Se Ualalapi, essencialmente, ergue e derroca um império nguni, essa etnia de Ngungunhane, As mulheres do imperador é mais uma história além das peripécias que ditaram o fim de um reinado. Esta história produz-se na viagem pelo Sul de Moçambique, por Portugal, São Tomé e, mais profundo, pelas crenças, dores, desassossegos e sentimentos dessas rainhas pretas, desabitadas de si mesmas por terem conquistado a preferência de Ngungunhane. Também por isso, dá-se nesta ficção a grave degradação da personagem. Mas comecemos pelo primeiro livro.
Image result for As mulheres do imperadorEm Ualalapi, temos pelo menos dois momentos em que a degradação da personagem acontece. No primeiro, é Damboia, tia do imperador, quem está no centro das atenções, quando morre ainda viva, vítima de uma menstruação de três meses. Devido ao cheiro nauseabundo aí causado, Damboia perde poder e influência, quando os seus movimentos ficam condicionados ao átrio domiciliar. A linguaruda, que chama cães aos súbditos, enferma, perde a capacidade de falar e é invadida por loucura: “Começou a andar de gatas e a trepar as paredes da casa como um réptil em desespero. Durante a noite uivava como os cães” (p. 48). Num segundo momento, a degradação da personagem, em Ualalapi, acontece quando o imperador, já nas mãos dos portugueses, profere o seu último discurso ao seu povo. Sem poder nenhum, Ngungunhane transforma-se numa entidade banal, ridícula, deprimida e cheia de fel. Destarte, o outrora poderoso imperador vira um objecto falante, prémio de guerra, conduzido, na verdade, não para um exílio, mas para um museu em que ele é a síntese do passado.
Em As mulheres do imperador essa degradação continua, quer em Ngungunhane quer nas suas esposas. No caso do “leão de Gaza”, a situação é agravada porque, arrancado da sua terra com as sete das tantas mulheres que possui, em Portugal, não fica nem com uma sequer, um verdadeiro ultraje e castigo para quem tanto preza o calor feminino. Além disso, mesmo tendo-se recusado a converter-se à religião dos brancos, já dominado, o imperador é baptizado, passando a ter um nome português. Morre triste e humilhado. Não obstante, separadas do homem, as rainhas de Gaza, igualmente, experimentam a derradeira condição do marido. Logo, com a excepção de Namatuco, tornam-se vulneráveis, passando a comer peixe e a desejarem ser amarfanhadas pelos braços dos homens. E o facto de Namatuco ser a mais sisuda, não a impede de se tornar uma personagem amarga, pois, desterrada de Moçambique, perde o contacto com os seus espíritos, daí a incapacidade de enxergar o futuro. Portanto, este Gungunhana encerra nas suas linhas uma preocupação estética alicerçada a uma história que se vai diluindo. Esta é uma porta de entrada para quem se preocupa com o passado e com o presente de Moçambique. E faz sentido o livro ser publicado no Brasil, afinal em causa está o conhecimento sobre a humanidade, que não se esgota na fronteira dos nossos pés, que nos faz proprietários da nossa própria voz. A degradação da personagem manifesta em Gungunhana também é nossa, por aceitarmos ser parte de uma história cujos protagonistas são os narradores do esquecimento, esses que nos afastam da nossa terra e das nossas particularidades.(Por José dos Remédios)