terça-feira, 9 de abril de 2019

Máscaras de Venâncio Calisto


Na Antiguidade Clássica, autores como Aristóteles defendiam que, na produção do drama, não se devia misturar a tragédia e a comédia, pois, se o primeiro tipo de texto implicava a representação de seres superiores, como deuses, reis e etc., o segundo passava pela imitação de seres inferiores, se quisermos, comuns.
As marcas dramáticas que há mais de 2000 anos deveriam estar em textos separados, de há uns cinco séculos para cá, numa simbiose cheia de autenticidade, sem proibições canónicas, contribuem para o que os homens do teatro consideram tragicomédia, isto é, fragmentos da tragédia e da comédia num único texto. (Des)mascarados, de Venâncio Calisto, é um pouco dessa mistura de estilos, o centro em qualquer tentativa de se associar a peça a tão monótona polaridade Mutumbela vs. Gungu.
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A obra teatral, exibida há uma semana no CCFM, é um espectáculo digno desse título. E, para o efeito, não precisou de várias atribuições ou de um elenco de artistas com nomes pesados. Ao encenador, também dramaturgo, bastaram-lhe a lucidez da loucura, uma câmara nos olhos e a subtileza de concretizar em palavras, no papel, toda essa atmosfera real, que de tanto fantástica, chegando a oscilar entre o estranho e o maravilhoso, chega a ser quase fictícia.
Propondo-se a trabalhar o quotidiano moçambicano Calisto arriscou-se a produzir um espectáculo com um tema já gasto. Retratado de mil e uma maneiras, por músicos, escritores e grupos teatrais. Aliás, também há uma semana, o grupo Mintsu apresentou uma peça de Emerson Mapanga com o mesmo teor que (Des)mascarados: a subalternização da mulher, a configuração do género feminino como elemento fundamentalmente procriador, a representação do amor em ambientes de cólera, a oposição fidelidade vs. adultério e o paradoxo entre o moderno e a convicção enraizada nas tradições. Mesmo tendo-se arriscado tanto no processamento da verosimilhança, aquilo poderia ter acabado num cliché enfadonho, Venâncio Calisto superou-se, quer em termos de dramaturgia quer em encenação. Daí ter conseguido montar uma peça intrigante, impondo-nos vários sentidos interpretativos na eternidade dos minutos que durou.
Não obstante, porque um espectáculo teatral não depende apenas de dramaturgia e encenação, enaltece (Des)mascarados o charme de Rita Couto, no papel de Arcanjo, quem nos faz olvidar a sua condição de mulher na delicada tarefa de fingir ser o oposto do que rigorosamente é. Já havíamos a visto como boa “neta de Ngungunyane”, há um ano, entretanto, em (Des)mascarados a actriz ultrapassa os limites do apenas interessante. Eleva-se tanto que consegue ter um falo entre as pernas e barba em toda a cara. Ao menos assim a vimos ao actuar com Sufaida Moyane, Amélia na peça, outra “neta de Ngungunyane” que nos lembra tanto Lucrécia Paco. Não poderíamos encontrar outra forma de dizer que se vaticina um futuro auspicioso para jovem actriz, de uma singularidade rara e bem cara.
O espectáculo de Calisto é, na verdade, uma história de amor, na qual Amélia tenta ser águia, de modo a tocar a plenitude. No entanto, há um boicote que é obrigada a ultrapassar: o grande liberal que tem em casa, o marido Arcanjo, quem, desejando bem à esposa, não é indiferente à necessidade de ser pai. Então assim instaura-se uma querela tácita e simultaneamente expressa. À volta disso gira o enredo, na dicotomia sonhos vs. desejo e sonhos vs. oportunidades. Nisso, a questão que se coloca é: quem vai livrar-se da máscara primeiro? Enquanto a resposta não surge, a peça vai desenrolando histórias paralelas, cruzando honestidade e falsidade, o ritmo e a dança hilariante. O som é bom e os passos oportunos, porém ficou estranha a presença dos dois músicos no palco (Carlos Ebu e Robath Estevão). Aquele local sagrado não lhes pertence, mas aos personagens. Então, estivessem a tocar nos bastidores, passariam discretos pelo espectáculo como se impunha, sem disputarem atenção com Arcanjo e Amélia.  
Seja como for, (Des)mascarados é um trabalho de recriação da vida, dos melodramas da mulher, num tempo e espaço sugestivos. Na peça, de facto, nos revimos e, com algum discernimento, questionamos a ordem naturalizada das coisas.