A exposição intitulada “Aquilo o que o corpo já esqueceu” do
escultor Luís Santos que será inaugurada no próximo dia 01 de Outubro no Centro
Cultural Franco-Moçambicano (CCFM), vem suscitar um debate que vem de longe,
mas que ainda tem respostas ambíguas e controversas. Enquanto o artista procura
expressar a sua personalidade desassossegada, a sua paixão por “coisas” e vai
provocando um debate social, “fingindo” não ser de propósito o que os olhos
vêem.
Fomos visitar o seu atelier para ver os trabalhos que vão à
exposição, e, para lá da negação do conceptual, as obras levantam-nos questões
sobre a própria arte, a sua funcionalidade, mas também sobre o mundo, como ele
é tão “grande” como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, mas que cabe na
mão de um artista que já se revelou, mas que agora, reclama reconhecimento.Nenhum
desses elementos aqui levantados são ideias concretas do artista, aliás, Luís
Santos, não é um artista de afirmações concretas, insinua. As suas obras são
uma consequência inevitável de um trabalho que foi planificado simplesmente
para resolver os dilemas existenciais do artista inconformado, quebrar as
paredes em que se guarda a rebeldia de um jovem criador, que não tem outro
objectivo, senão ousar e demarcar-se entre vários artistas que se apresentam no
nosso contexto.
De resto, Luís Santos, que é um apaixonado pelo desenho, vem
mostrar-se como um detalhista fascinado por quebra-cabeças. Um homem que
convive em pleno com o artista, numa relação em que os dois não se confundem,
são produto da mesma natureza, a insatisfação pelo estado das coisas. Pelas
obras que vem ao público – com a exposição no CCFM a ser um bom momento para
essa convivência com a sua criação – espelha a imperfeição da humanidade, do
universo, como se o mundo fosse pequeno, que cabe nas suas mãos, mas sem deixar
de ser essa universo surpreendente.Uma exposição que conta com a curadoria de
Sara Carneiro, que vive de perto o dia-a-dia do criador, como se completasse a
sua obra. E por isso difícil de não ouvi-la a comentar sobre a obra do artista.
“O Luís tem a necessidade de pegar nas coisas, talhar,
acertar parafusos e essas coisas todas”, um trabalho altamente manual,
portanto.
Há quem diga que as mãos são como os olhos, elas vêem e
sentem, mas mais ainda, as de Luís Santos, constroem, não necessariamente como
um acto de engenharia, antes como um acto de dar vida, ensinar a andar, mostrar
os caminhos e esperar que a humanidade tome conta. Mas de onde surge esta
característica? Como compreender tudo isto? Divaga o artista para responder
estas questões feitas somente para compreendê-lo.
“Gosto de mexer nas coisas, tenho muito prazer em trabalhar.
Não sei… sou uma pessoa activa. Tenho que mexer alguma coisa. Não consigo ter
um trabalho repetitivo”. Explica-se o artista, com o ar perturbado, querendo
compreender em si mesmo, toda esta fúria criativa. A exposição que se apresenta
no CCFM de 01 de Outubro até 05 de Novembro é um projecto que não vem do acaso,
explica-nos. Apesar de ter sempre produzido as suas obras, o artista
concentrou-se somente para “Aquilo que o corpo já esqueceu”.
Luís Santos é um artista de todos os dias, que entra na sua
oficina e perde-se nos trabalhos que não são trabalhos, é antes a tentativa de
dar corpo às suas alucinações, acariciar o imaginário, conviver com o barulho
das máquinas que ele mesmo construiu para dar resposta às formas que tem de
sair do papel, por onde partem as suas ideias, para a realidade, onde nem
sempre é um destino perfeito. “Acidentes de trabalho acontecem, pode ser que
uma obra não saia como deve ser, como desenhei, mas poucas vezes. Sempre
consigo fazer como a obra foi pensada”, falou-nos do seu processo criativo.O
seu local de trabalho que é também o local de morada, está todo configurado
para que funcionem as suas ideias. A sua necessidade de chegar à obra final tal
e qual foi sonhada e projectada tornam-no num fabricante de máquinas de forjar
a arte. Afinal, o seu trabalho com a madeira e o ferro, seus principais
materiais, alinham-se com as suas influências familiares. Pesa sobre o escultor
Luís Santos, o histórico familiar de serralheiros, escultores, arquitectos,
poetas e artistas plásticos, desde avôs até seu pai. Luís Santos prefere
pensar, desenhar, ir a procura dos materiais para construir as suas obras,
construir as máquinas que ajudem a talhar a madeira e os ferros que se vão
transformar em obras de arte, sem dar-lhes um destino acabado, abrindo
possibilidades para a transformação. Um artista que se debate com a
funcionalidade da arte, um debate que tem consigo desde os tempos da Faculdade
de Belas Artes, acaba nos revelando.
“Embora haja um processo semi-industrial, maquinarias, há
também uma tentativa de me conectar com uma forma mais essencial de fazer as
coisas. Acho que este banco [o banco que será exposto no CCFM] de certa forma
representa isso, brinca com a ideia de tradição e foi tudo talhado a mão e
aquelas peças foram praticamente talhadas a mão.”
Essencialmente, o artista acaba antevendo o que virão a ser
as características da exposição que aí vem.
“As coisas são texturais e chamam o expectador a tocar nelas.
Acho que de certo ponto a arte virou-se para o aspecto conceptual, e tudo que
interessa é o conceito, a estética não interessa. Não discordo e nem desgosto
desta forma de fazer arte, mas acho que se poder trazer o melhor dos dois
mundos é bom. Se alguém acha que é visualmente fascinante vai querer explorar
mais, vai querer tentar ver o que a coisa lhe transmite. Agora há muita coisa
que produzo que vai ser muito específico, fechado, o que interessa é o que
aquilo diz para outra pessoa. Não estou a confundir as pessoas de propósito”.
A curadora explica que compreende a forma prática em que
trabalha o artista. Todas as suas ideias, têm-nas registadas e só depois dai
parte para a construção. “O Luís é muito bom em transmitir as coisas do seu
mundo imaginário, o seu pensamento pessoal.
Finalmente, a exposição “Aquilo que o corpo já esqueceu”
parece ser, por um lado, uma proposta para reflexão e debate sobre as
tradições, no contrapeso entre os géneros, na forma como se convive com o papel
da mulher na sociedade, mas também em como toda uma sociedade se guia por
modelos que hoje se mostram falhados e prejudiciais para o equilíbrio. Mas
também na forma controversa em que se vê a mulher nas diferentes realidades
moçambicanas, em como, por exemplo, uma mulher de joelhos, pode ter diferentes
interpretações, nas sociedades matrilineares e patrilineares.Mas também há
espaço para a invocação do sagrado. Uma das esculturas que será exposta,
representa uma mulher agachada, uma crítica à forma de tratamento da mulher
como sexo frágil e que até deve ser submissa, mas feita de uma madeira que vem
de uma árvore com um significado espiritual na zona Sul, o canhoeiro, bastante
usada para o contacto entre o Homem e a outra dimensão. O que pretenderá o
artista com esta mistura?
Há mais em todo o conjunto das obras, o que sempre remeterá
para várias reflexões ou contemplações. Desde o desafio às formas, aos
conceitos, até à habilidade para construir objectos interativos, que
correspondem ao íntimo do artista, essa necessidade de mexer com as coisas,
dar-lhes corpo e movimento, como se as tornasse vivas.Uma exposição em que há
um “cruzamento de interesses para além das artes plásticas.”, Conclui Sara
Carneiro.