terça-feira, 24 de dezembro de 2019

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À boleia do moto-táxi

Durante a madrugada, o sono teimava em não dormir. Liguei o notebook e vi a última meia hora de “Bukowski – Born Into This”, e fiquei, como o lobo cachaceiro, a repetir “Why are you so mean to me”, como se me não bastasse a saudade talhada nas paredes brancas do quarto da casa de hóspedes.
Image result for NiassaAcordei pouco antes das nove horas. O mata-bicho, que é grátis, não tinha graça ou sabor: dois pedaços de mandioca cozida; uma porçãozinha de folhas esventradas de alface e uma omeleta de tomate e cebola transparente. (Comi os ovos e pedi um outros, a empregada – que não era a Fátima, muito linda e sorridente – esclareceu-me que “É um ovo por hóspede!” e que, daquela vez, não faria caso. Com a garfada na boa, lembrei-me de quando eu vivia na Mafalala, próximo da fábrica de gelo. No último andar do prédio, morava o Manuelito com um irmão mais velho que era membro de uma gang famosa, dois primos e a avó, que cuidava da casa. Uma vez o Manuelito contou-me que a avó, quando ia bater ovos para uma omeleta, adicionava-lhes dois fiozinhos de água, para aumentar-lhes a quantidade e assim chegasse a todos.). Comi o que restava da omeleta transparente preocupado, fazia-se tarde e eu tinha que ir apresentar-me na escola onde trabalharia.
Related imageLichinga é uma cidade. Lichinga não tem uma rede de transportes urbanos. Assustei-me, como é, então, a mobilidade dos munícipes? Uma vasta nuvem de motorizadas faz de cápsula de teletransporte. Por todo o lado, nas esquinas, em pontos aleatórios, os moto-taxistas – que não usam capacetes e tão-pouco os oferecem aos seus clientes (o risco é por conta própria) – estão prontos para ganhar tempo. As deslocações custam, em média, 50 meticais. Num mês, isso é um luxo para a maioria da população. Tive pena das crianças, dos alunos, de todos. “As pessoas já estão acostumadas, andam sete, vinte quilómetros, é normal.”, disse-me o guarda da hospedaria. “Táxi!”, chamou ele. Eu subi e fui fazendo perguntas ao piloto.
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Deixei para trás a enorme escola secundária e trepei um outro moto-táxi em direcção à Universidade Católica local. A estrada era de saibro e fazia uma poeira danada. A Milena, que estudara comigo em Maputo, coordena o departamento de administração pública. Ela surgiu quarenta minutos depois (sim, eu tinha muito tempo e estivera a ler), mais forte do que eu me lembrava, com os lábios da cor de beterraba e um “cabelo humano” longo e liso. Depois de cerca de uma hora de conversa e mesmo na porta de saída da sala dos professores, notei um enorme cartaz que estabelecia os trajes e a aparência para os estudantes. Policiamento do decoro! Um dos pontos definia: “É proibido o cabelo despenteado…”. Brinquei: “Assim como o meu?”, a Milena sorriu, “Sim, aqui tu não estudarias”.
Related imageDecidi almoçar em um restaurante que me tinha sido indicado, o “2+1”, que estava cheio por conta de uma formação que acontecia na sala ao lado, sobre a prevenção da malária. Pedi uma cerveja e esperei por uma mesa. No fim, ficou o restaurante vazio. Ao meu lado, quatro membros de um partido político discutiam cargos e nomeações. “… Ele ficou chateado quando descobriu quem o irá substituir…”, disse um; “Essa coisa de cessar funções deverá ser um acto público…”, disse o outro; “Há um informante entre nós e ele já foi descoberto…”, disse um terceiro; eu senti-me um agente secreto. E comia um peixe com legumes. Choveu bastante depois. Fez-se um charco no coração do restaurante e o toilette estava inundado. Para terminar a noite, vendi alguns livros e fechei a programação para ir ao Lago Niassa no dia seguinte. 
(Pereira Lopes)