sexta-feira, 6 de agosto de 2021

“Nacionalismo e literatura”

Orlando Mendes (também Osvaldo Mossuril e Zeferino A. Nhacale), de nome Orlando Marques de Almeida Mendes, nasceu na Ilha de Moçambique, a 4 de Agosto de 1916, e morreu em 1990, em Maputo. Mendes foi um eclético escritor, tendo publicado poesia, romance, teatro, crítica literária, ensaios e infanto-juvenis. A sua imensa e diversificada produção literária, influenciada, no início, pelo pragmatismo do neo-realismo do movimento de Presença, é caracterizada ideologicamente pelo esforço de instauração de um espaço literário nacional, como constata Agostinho Goenha.

Em Lourenço Marques (agora Maputo), Orlando Mendes frequenta até o sétimo ano do Liceu. Até 1944, é funcionário dos Serviços de Fazenda, quando segue para Portugal, onde licenciou-se em Ciências Biológicas, pela Universidade de Coimbra. Exerceu, ainda na universidade, funções de Assistente de Botânica. Regressado a Moçambique, em 1951, passa a pertencer ao quadro de funcionários dos Serviços de Agricultura de Moçambique, e depois, a exercer funções de investigador de medicina tradicional, no Ministério da Saúde. Nos últimos anos de sua vida, foi redactor na revista Tempo.

A estreia de Orlando Mendes acontece em 1940, com Trajectória (edição de autor), tendo depois publicado Clima (1951), Carta do Capaz da Estrada (1960), Depois do 7º Dia (1963), Portanto Eu vos Escrevo (1964), Portagem (1966), Véspera Confiada (1968), Um minuto de Silêncio (1970), Adeus de Gutucumbui (1974), A Fome das Larvas (1975), País Emerso I (1975), País Emerso II (1976), Produção Com que Aprendo (1978), Lume florindo na forja (1980), Sobre Literatura Moçambicana (1982), Papá Operário mais Seis Histórias (1983), As faces visitadas (1985), O menino que não crescia (1986), Telefonemas a calhar e outros contos (1995) e Minda (2001), publicado postumamente pela Associação dos Escritores Moçambicanos.

Orlando Mendes teve colaboração literária dispersa em jornais e revistas como Itinerário, Tempo, Voz de Moçambique, A Tribuna, Caliban, Notícias, Charrua e Forja, de Moçambique; e Vértice, O Diabo, Mundo Literário, Seara Nova, Colóquio/Letras e África, de Portugal. Está, também, representado em inúmeras antologias de poesia e prosa. Recebeu, durante o seu percurso, o “Prémio Fialho de Almeida”, dos Jogos Florais da Universidade de Coimbra, em 1946, e o primeiro prémio de poesia no Concurso Literário da Câmara Municipal de Lourenço Marques, em 1953.

Depois da Independência e até a sua morte, Mendes promoveu a literatura moçambicana, dirigiu a Associação dos Escritores Moçambicanos e teve sempre uma participação cultural muito activa.

Hoje, se estivesse vivo, Orlando Mendes completaria 105 anos.


A extensa produção literária de Orlando Mendes não se insere, como aponta a crítica, no proto-nacionalismo de Noronha ou Noémia, no “elogio da moçambicanidade”, por assim dizer, e muito menos no movimento de “ex-colonização da literatura”, preocupação de Rui Nogar e José Craveirinha, entretanto, ela [a produção] é, de certo modo, de denúncia e de revolução, então, uma produção continuadora. Embora seja imensamente associado ao neo-realismo português, Mendes – que durante a sua estada em Portugal terá tido contacto com escritores como Afonso Duarte, Armindo Rodrigues, Miguel Torga, Fernando Namora, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Érico Veríssimo, etc. – recusava-se a pertencer a uma corrente, afirmando que a sua literatura era uma “expressão anticolonialista”.

A obra de Orlando Mendes é, quase toda ela, “assombrada” por um engajamento e exaltação com/do nacional, ele insurge-se, busca “contundir o inimigo” com o seu levantamento social, vertentes que, aliás, compõem o que Agostinho Goenha chama de “concepção marxista do fenómeno literário”.

O seu projecto poético, ideológico nos últimos anos, é tenso, e no dizer de Alfredo Margarido, uma mescla de “denúncia de alienação do Homem” – negro ou branco (vide. Portagem) – e o enganchamento dos grupos étnicos moçambicanos. A obra de Mendes (poesia e prosa) é também identificada pelos traços de oralidade, ele funde o português elegante com o português local, ajuntando os chamados moçambicanismos.

Para vários pesquisadores, a obra de Orlando Mendes é indispensável para o desenvolvimento e para o estudo da literatura em Moçambique.

 

Textos de Orlando Mendes

Exortação

Jovem, se tens exercícios de literatura

escritos há mais de um mês, destrói-os.

Rasga-os ou queima-os de preferência

(consta ser universalmente mais ortodoxo)

e se a chama te chamuscar unhas e pele

e as sujar a cinza, não queixes a dor

e lava-te. Destrói-os. Guarda-os todavia

fiéis na memória, palavra por palavra,

para que possas transmiti-los a um amigo

quando depois do venal acto de amor

forem também vender a irresistível suspeita

da tua voz trémula e dos teus outros actos.

Mas não deixes de escrever. Peço-te que não.

In: Adeus de Gutucumbi, p. 25

 

 Em África

Quantos de nós

andam por aí ensimesmados

e medem o tempo e o comprimento dos passos que dão

sabendo o princípio e o fim

da sua própria caminhada imutável

e meneiam de vez em quando a cabeça

pelo sim ou pelo não.


Quantos de nós

exaltam o delírio dum poema

e o dizem entre dentes

deixando circular tranquilamente o sangue nas veias.

Mas ainda é preciso denunciar

os cantos das imagens virtuais

e desenraizar com o gume da palavra nua

as últimas consequências sentimentais

embandeiradas dentro das verdes searas

já é preciso colher e distribuir novas sementes

e lançá-las por mãos proletárias à terra comum

e conhecer o mecanismo da arma que se empunha

e rigorosamente apontar ao alvo

não estando sós.

[…]

Quantos de nós

têm que reaprender as distâncias e acertá-las

à custa do timbre da sua voz

para que todos cantem e accionem

a luta de libertação e a liberdade conquistada

com o impacto de balas.

In: Lume Florindo na Forja, 1980

 

Excerto de Portagem (1966)

A velha negra sai da palhota e fecha os olhos doridos pela luz crua do sol. Depois abre-os lentamente e a boca encarquilha-se-lhe num sorriso aparentemente sem sentido. No terreiro não há ninguém que lhe faça lembrar coisas do mundo que está esquecendo. Tudo quanto ela entende do exterior é aquele ranger medroso dos ramos nus da árvore mirrada, sacudidos pelo vento quente e vagaroso que passa e se esconde na terra.

 


Tremem-lhe as mãos secas agarradas ao bordão nodoso. Quer alongar a vista para lá do capim ressequido que balouça cadenciadamente, mas abana a cabeça, desiludida. Dia a dia, a vista se limita mais nas expressões para os seus afectos. Amarfanha a capulana até à coxa enrugada e, traçando as pernas, deixa cair mansamente o corpo magro para o chão.

Alima geme de cansaço. Ou de tédio? Nem ela saberia dizer. Ajeita-se encostada à paliçada da palhota. A sonolência começa a perturbá-la. Todos os dias, à mesma hora da manhã, a velha vem ali sentar-se e promete sempre não se deixar adormecer. Também agora tenta fugir ao sono inimigo, que ela tem medo de perder de vez a contemplação da planície mordida pelo sol. De ano para ano, a planície diminui de extensão diante da fadiga dos seus olhos. E ela pensa que lhe vão roubando misteriosamente o mundo de ano para ano.

Dormita uns instantes sem tempo, para logo acordar sobressaltada. Reconhece o chão pisado por três gerações de negros. Fixa os olhos mortiços nos ramos descarnados do cajueiro plantado pelo avô, o escravo Mafanisse, no dia da sua libertação. Recordando, é depois o mar que lhe aparece, um mar de ondas bravias que foi a fronteira da imigração dos negros para o sul, na grande seca do ano em que lhe nasceu a filha Kati. Kati casou com o capataz dos mineiros do Marandal, depois de ter gerado e parido um filho de branco. Aí começou a solidão enorme da velha Alima. Solidão do simbólico cajueiro entre a erva rasteira e os galhos agrestes das micaias. E é na planície que fica o mundo moribundo da vida toda da negra Alima.

A velha ainda se lembra de que, lá longe, a planície se esvai no sopé da serra do Marandal. Vieram os brancos com as suas máquinas para abrirem os grandes buracos na terra e tirar o carvão que os negros carregam para as vagonetas. Mas Alima nunca saiu da planície senão no ano longínquo da grande emigração. Os negros mudaram as palhotas para a nova povoação fundada no Marandal. E tentaram levar a velha. Ela, porém, é já a única pessoa viva que ouviu da boca dos escravos a história recontada do mundo da planície. E recusa-se a abandoná-la. A planície quase despida não atrai sequer as feras e ninguém já por ali passa, que o transito para a mina se faz pelo caminho da berma da serra. Solitária, a velha Alima tornou-se dona humilde e incontestada da planície que não tem préstimo para mais ninguém.