segunda-feira, 4 de junho de 2012

Futebol e Colonialismo

À primeira vista, este trabalho é sobre futebol e o modo como era praticado em Lourenço Marques – a maior cidade e centro administrativo da colónia portuguesa de Moçambique – na primeira metade do século XX. O trabalho interpreta o desenvolvimento do jogo, desde a fundação dos primeiros clubes formados por expatriados ingleses, passando pela organização em Moçambique de filiais de clubes metropolitanos como o Sporting e o Benfica, até à abertura deste clubes a membros de uma elite africana, a maior parte deles mestiços, e à criação da Associação de Futebol Africana, com jogadores, na sua maioria, provenientes das classes trabalhadoras africanas que viviam na periferia pobre da cidade onde estes jogos decorriam.
Os historiadores do futebol irão, com certeza, ficar interessados em aprender algo mais sobre o contexto que produziu talentos como Mário Coluna ou Eusébio, ambos figuras maiores do futebol europeu em meados do século XX. E a reivindicação de que o futebol é um – senão o – desporto mundial será apenas reforçada pelas descrições do entusiasmo com que os moçambicanos, de diferentes origens, abraçaram o jogo há tantos anos. O trabalho de Nuno Domingos vai, no entanto, muito além de uma narrativa histórica da disseminação de um jogo europeu (na sua versão moderna) numa colónia africana. A sua “grande questão” é a relação ente o colonizador e o colonizado concebida desde o jogo de futebol.
Deste modo, esta investigação baseia-se e dá continuidade a uma tradição das ciências sociais que tem vindo a produzir, no domínio dos estudos africanos, resultados relevantes nas últimas décadas: o estudo da “cultura popular”. Até à data, os estudos da cultura popular africana focaram-se sobretudo nas artes, na escultura, na pintura, na música, na dança, na literatura, no cinema e no teatro. Estes trabalhos tornaram visível a interacção dinâmica entre tradição e modernidade no continente africano, destacando os meios pelos quais as formas africanas de expressão se articularam com a experiência vivida dos processos históricos que ligaram o continente com um mundo mais largo, do colonialismo até ao nacionalismo revolucionário, ao socialismo e ao neo-liberalismo. Através destes processos, os africanos adoptaram e adaptaram géneros expressivos para os seus próprios fins e, como este trabalho demonstra, contribuíram profundamente para as trajectórias globais destas diversas formas.
O próprio Nuno Domingos adopta e adapta os estudos da “cultura popular” para perseguir os seus objectivos neste trabalho. Fazendo-o, estende a abordagem a uma área ignorada com demasiada frequência por historiadores e cientistas sociais, o desporto. Ao observar a forma como o futebol era jogado no Moçambique urbano por intermédio do enquadramento conceptual do género põe de parte a asserção  de que o jogo – definido como é por um conjunto de regras – viaja inalterado de um contexto social para o outro. Tal como as artes, o trabalho mostra-nos que o futebol foi transformado por aqueles que o praticaram em locais como o Moçambique colonial. Mas não é a transformação do jogo em si mesma que mais interessa a Nuno Domingos. Ele está, sobretudo, mais interessado nas “grandes questões”, isto é, em saber como o jogo transformou, ou não, aqueles que jogavam neste contexto colonial, e de como foram, ou não, capazes de usar o jogo para transformar o mundo em que viviam.
O pouco que se tem escrito sobre desporto em contexto colonial tende a focar-se no seu uso como instrumento de poder. Ao jogar – ou sendo compelidos a jogar – os jogos dos colonizadores, defende-se que os corpos dos colonizados foram disciplinados e as suas mentes orientadas em direcção a novas ideias tais como a “competição estruturada”, o “fair play” e o “Estado de direito”. O trabalho de Nuno Domingos demonstra claramente que, em certa medida, o regime colonial português concebeu o desporto, nomeadamente o futebol, como uma forma de “civilizar”. Demonstra também, no entanto, que este não foi um projecto inteiramente bem sucedido. O modo como os moçambicanos urbanos jogaram futebol permitiu-lhes exprimir e reforçar as suas formas de estar no mundo, em parte para se transformarem a si próprios, numa tentativa de acederem a um universo que quase sempre os excluía.

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