terça-feira, 19 de junho de 2012

Dela saía pus de sangue

O capim desapareceu instantaneamente, deixando uma passadeira estranha, invulgar, e pegadas com abertura para sepultar mais de cinco corpos. As folhas das árvores secaram e as frutas amareleceram de repente. De longe, os ventos algozes anunciavam a chegada dos desconhecidos com as suas vozes metralhadoras que sacudiam a audição dos vivos.
Uma chuva violenta e esverdeada iniciou a marcha pelas colinas daquele bairro despovoado, onde só residia a bela e escultural Mulhapfa, que, no seu aconchego debaixo da frondosa árvore, o Phimbi, lacrimejava e contorcia de dores de parto, cantando, também, ao som saboroso a vinda ao mundo de mais uma vida para lhe acompanhar naquele deserto misericordioso.
As luzes dos relâmpagos irromperam da árvore adentro feita cabana, onde Mulhapfa se encontrava nua, de pernas abertas, espelhando a obra volumosa que foi deixada solitária com a morte do esposo, ventre exposto à espera de ejacular a dádiva do Senhor. Nada se mexia no corpo da mulher sofrida: dos olhos dela saía pus de sangue que permutava com fezes dos pássaros. Dos mamilos escorria esperma infectado pela febre aftosa, do ânus espreitava um intestino estranho ao seu corpo que reclamava cesta média no lugar da básica, da vagina... nada, ela estava muda, fechada a sete chaves para que não saísse dali a nova vida.
Mulhapfa chorava no inferno da vida, clamava pelo nhanga inexistente ou pela mulher nhamussoro que lhe medicou na primeira gravidez, aos poucos perdia a respiração, mas lutava e buscava forças no além, chamava pelo nome do seu enterrado marido, dos seus vizinhos imaginários, das vacas leiteiras que lhe acompanham nas tardes de sol cheio e impetuoso.
Já sem forças e convencida que tinha chegado o tempo da sua partida para o outro mundo, perdendo, por tabela, a vida que carregava no seu “santuário”, eis que, num ápice, na religiosidade das forças dos defuntos, do poder dos antepassados, uma vaca branca com bigode, chifres entre os seios e em período de gestação cai em frente da senhora, dança algo que não existe, solta um peido no momento em que dá o último passo da dança estranha. lentamente, deixa cair saliva sobre a barriga de Mulhapfa, passa a língua entre as pernas e, por cima das mamas, deixa cair as suas fezes pretas.
Nesse instante, uma chuva de mochos de olhos de sangue levantou-se entre as folhas secas caminhando em direcção a Mulhapfa, as corujas batiam intensamente as suas asas, criando uma melodia clássica em sol sustenido, acompanhado pela orquestra das cobras mambas que chupavam o esperma que saía dos mamilos da mulher tatuada de desgraça.
As campas abriram-se em sintonia com o remoinho das missas contra os feitiços, uma poeira sangrenta levantou-se contra a cabana de Mulhapfa, homens e mulheres nus, osseados pelo tempo, saíram das sepulturas, vincaram as suas energias e poderes divinos. Em frente à mulher de pernas abertas, em olhares rancorosos e de ódio contra o mal que castigava a pobre mulher, os defuntos descarregaram a sua raiva sobre o chão onde se encontrava deitada a mulher grávida.
Num compasso de mortos em visitas de protecção, os defuntos dançaram ao redor da cabana, as batidas das suas pernas abriam covas de alegria, as ancas se moviam em movimentos sexológicos, afastando o feitiço das redondezas. O reboliço das nádegas famintas da dança salvadora fez saltitar os “aprumos” dos homens defuntos, estes zombaram contra os feiticeiros, cimentaram os pés no solo de pedras, enrugaram as faces pintadas de sangue, tiraram das bocas dos estômagos o ecoar das vozes dos madodas em contrabaixo e contracenaram com os outros mortos não presentes, phalharam em preces seculares e, tatuados de fezes humanas, comeram o capim seco dançando o xigubo da terra, a dança do Hossi, a dança dos mortos.
Os mortos dançavam em sintonia com os vivos e, no epílogo da coreografia, os mortos se juntaram e formaram um círculo mágico, onde, todos, homens e mulheres, sobre o chão onde se deitava Mulhapfa e diante do seu sexo selado pelo feitiço, dançaram a dança dos mortos, a dança contra o feitiço, com gritos, giros e com movimentos uniformes à mistura. cada um libertou o seu sémen por cima da barriga de Mulhapfa, que lentamente escorreu até colar na vagina da mulher que, em fracção de segundos, gritou ressuscitando da morte enfeitiçada, e, sem esforços, começou a dar à luz a um guerreiro que veio a chamar-se Mussivi e seguiu as pegadas dos “seus” mortos. e até hoje passa a vida a executar a dança dos mortos para salvar os vivos e eternizar os mortos.
Era a vitória dos mortos contra a vontade e feitiço dos vivos.

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