segunda-feira, 3 de outubro de 2016

“Comboio de Sal e Açúcar” estreia em Locarno

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Locarno é mais do que uma cidade para Licínio Azevedo, é, na verdade, um espaço de concretização de sonhos. E só podia ser, pois é naquele ponto do mundo que decorre anualmente um dos cinco maiores festivais de cinema. Há dois anos, naquela cidade turística da Suiça, o realizador moçambicano viu a oportunidade de transformar o romance “Comboio de Sal e Açúcar” em filme.
O projecto ganhou dois dos três prémios disponíveis para apoiar a realização dos projectos cinematográficos de vários países num fórum de financiamento denominado “Open Doors”. Foi exactamente na 67ª edição do certame que o filme foi subsiado perante um júri europeu, que envolvia televisões e agências governamentais. Entre 900 projectos, “Comboio de Sal e Açúcar” foi um dos dois guiões premiados, o que garantiu o início da sua produção.
Resultado de imagem para cinema locarnoPor isso, Locarno era o sítio ideal para estrear internacionalmente a longa-metragem. E assim foi… com 4500 espectadores, em Piazza Grande – no coração do festival – “Comboio de Sal e Açúcar” foi bem recebido e, como se não bastasse, mereceu o Prémio de Melhor Produção, em Agosto passado. Este prémio foi atribuído pelos críticos de cinema italianos. Os profissionais da sétima arte justificam que é por demostrar “um novo caminho do cinema africano e porque é prova de como um cinema africano pode chegar ao grande público”, conta Licínio Azevedo, numa entrevista ao Jornal O País, na tarde deste sábado. O realizador acrescenta que o filme emocionou o público e foi aplaudido por ser diferente, pois embora retrate uma história de guerra dos anos 80, aborda também o drama do amor, o que o torna contemporâneo. 
Depois de Locarno – onde teve a estreia internacional – o filme vai seguir por outros festivais. Em Outubro, vai participar no Festival do Rio – maior montra do cinema ibero-americano, que exibe filmes de Portugal, Espanha e América Latina –, depois está convidado para Índia, no Festival de Goa, já com 60 anos de história e para vários festivais que para Licínio Azevedo não é novidade, pois em alguns deles já amealhou vários prémios. “Virgem Margarida” é um dos filmes que foi bastante agraciado.
Resultado de imagem para licinio azevedoPortanto, só depois dessa fase dos festivais (fase que o realizador não sabe quanto tempo vai durar) o filme será mostrado noutras plataformas. “O que eu pedi aos produtores é que fosse feito um trabalho no sentido de levar os filmes ao público, não a festivais que tem público restrito, mas às salas de cinema”, partilha. Só que o realizador lamenta o facto de Moçambique não ter muitas salas de cinema, o que vai dificultar o maior alcance pelo menos no país.
Na segunda fase da mostra, será exibido para vários países onde estão os co-produtores – Suiça, França, Portugal, Brasil, África do Sul e Moçambique – e outros países com distribuidores já garantidos.
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A terceira fase também já está assegurada. A divulgação do filme, neste período, será em África, onde 17 países serão contemplados. “Eu acho que o filme vai cumprir com os meus ideais, que é chegar ao grande público e sair desse esquema restrito que são os festivais”, finaliza.
A longa-metragem de 90 minutos que tem como principal elenco os moçambicanos António Nipita, Sabina Fonseca e Melanie Rafael, o angolano Matamba Joaquim e o brasileiro Tiago Justino conta a história de centenas de moçambicanos que viajavam de Nampula a Malawi para trocar sal por açúcar. É um retrato dramático dos episódios da guerra civil que inclui também uma história de amor.
“Comboio de Sal e Açúcar” é baseado no livro homónimo que Licínio Azevedo escreveu há mais 15 anos.

Salas de cinema: rentabilidade para a sétima arte

“A rentabilidade do cinema depende da capacidade dos produtores conseguirem ter distribuidores”, assegura Azevedo, acrescentando que que o cinema americano chega ao “grande público” porque para cada um dólar investido para na produção de um filme, as vezes são 100 milhões, há um outro dólar investido na distribuição quando se faz a publicidade e se chega às salas. “Nós infelizmente não temos isso. Já para conseguir um milhão de dólares para fazer um filme de guerra é muito imagina o dinheiro para distribuição”, lamenta. O realizador diz que esta triste realidade abala o mercado africano, da América latina e grande parte da Europa. Ou seja, um filme só é rentável quando há muitas salas de cinema e se o público conseguir ver os filmes. O contrário disso, não haverá recursos para a materialização de outros filmes, excepto guiões de realizadores já conhecidos. E repete-se o ciclo, realizadores desses países voltam a concorrer para serem premiados, tal como foi agora com “Comboio de Sal e Açúcar”. 

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Preparando longa-metragem

Há quatro anos que Mickey Fonseca e Pipas Forjaz concebem a primeira longa-metragem na história da Mahla Filmes.Há quatro anos que Mickey Fonseca e Pipas Forjaz concebem a primeira longa-metragem na história da Mahla Filmes.Realizar um filme em Moçambique ainda é uma luta difícil de vencer, pior ainda quando a aventura tem como fim uma longa-metragem, por sinal, a primeira e independente no percurso da Mahla Filme.Mas não é a falta de grandes produções que reduziu a zero o esforço dos cineastas de Mickey Fonseca e Pipas Forjaz. No portfólio da produtora constam cinco filmes curtos, um dos quais é que emprestou o nome a empresa. “Dina” e “O Lobolo”, dois dos demais, foram premiados. Esta distinção é prova de que a qualidade sempre andou lado a lado dos dois profissionais.Agora, a equipa tem em manga o filme “Resgate”, cujo Fonseca é realizador e guionista. Já Forjaz é director de fotografia e editor desta longa-metragem avaliada em 150 mil dólares nas componentes de produção e pós-produção.Recentemente foi lançada uma  campanha para angariação desse valor, tendo em conta que a produção deste projecto é independente. Essa angariação é aberta ao público em diferentes plataformas, através da internet, e vai decorrer durante 30 dias.O filme conta a história de Bruno, um ex-presidiário em busca de redenção, que subitamente se vê mergulhado numa rede de raptos violentos. A trama decorre na cidade de Maputo, mas a história é universal, garante a produção. O trailer capaz de ilustrar a visão de Fonseca e Forjaz para o filme e a capacidade da produção de Mahla Filmes durante a campanha já está disponível nos vários canais de internet.Ao longo dos últimos quatro anos, desde que surgiu a ideia de conceber “Resgate”, a Mahla Filmes tem produzido spots televisivos, vídeos  institucionais e de música com o objectivo de poupar o montante necessário para o filme.Para Fonseca e Forjaz, a principal motivação para esta campanha denominada “crowdfunding” é produzirem o filme de forma independente, tentando encontrar alternativas produtivas, para os clássicos  fundos internacionais, que frequentemente, ditam aspectos como o tipo de estória que é contada, os géneros que são financiados, a contratação de financiadores de serviços nos países de origem de fundos, entre outros que, no entender dos cineastas, acabam por influenciar o cinema que é feito em Moçambique e outros países africanos.Caso a campanha seja bem-sucedida, Mahla Filmes espera que esta contribua para abrir novos caminhos para os cineastas moçambicanos e africanos. Esperam também, através da sua experiência, inspirar jovens cineastas a não desistirem do sonho de se tornarem realizadores renomados.

terça-feira, 12 de julho de 2016

“Corpo de Cleópatra”

As mulheres são como as ilhas: sempre longe, mas ofuscando todo o mar em redor
Mia Couto

É bem provável que aquele excerto de Mia Couto, extraído de Jerusalém, faça todo sentido, pois, além dos contornos que se confundem com as reentrâncias e saliências das ilhas, as mulheres, de facto, têm esse dispositivo natural de ofuscar tudo através da sua estrutura cativante. Coisa dos céus, dos deuses ou dos santos traquinas, que, diante da arrogância masculina, urdiram um conluio para a controlar ou desvia-la de alguns intentos. E nesta maldição – ou bênção – caímos todos, inclusive os poetas. Aliás, sobretudo eles, afinal, os garimpeiros da palavra, em muitos casos, fazem da imagem feminina uma razão de existência, um modo de ser e um instrumento que lhes permite lapidar os encantos do sonho imortalizados na alma de quem lê.
E um dos desses poetas incapaz de desviar o foco às mulheres é Adelino Timóteo, por isso, no seu livro mais recente, Corpo de Cleópatra, o autor segue os seus instintos naturais e canta loas à rainha egípcia com todas as notas dos acordes. Tendo Cleópatra como pretexto para a viagem pelo seu mundo interior, o poeta, neste livro com 59 páginas, põe-se numa aventura pelo seu continente, como se o propósito da odisseia fosse, mais que tudo, resgatar os passados mal contados. Então, focando-se numa das civilizações mais afamadas do mundo (Egipto Antigo), Timóteo retira de lá uma das imagens mais sedutoras, e, como se alguma vez a tivesse visto – daí o desejo lascivo –, sujeita-se a endeusar, de forma imaculada, Cleópatra e seus predicados. E o propósito, se tiver que existir algum, passa por libertar o que África tem de melhor: a beleza em potência.
Tecendo versos sobre uma notável rainha egípcia, este livro de Adelino Timóteo não deixa de nos convidar a uma reflexão em torno das semelhanças existes entre aquela imagem feminina, soberana por excelência, e África, um continente que à semelhança do que sucede com Cleópatra desperta sensações imensuráveis nos homens de cá e de outras proveniências. Cada um com interesses diferentes; cada um com fantasias particulares de aprofundar os seus desejos. Esta colectânea de poemas de Timóteo engrandece a terra africana através de uma entidade local, quase na mesma lógica de pensamento que a de José de Alencar, no livro Iracema.
Enquanto o escritor brasileiro reconstrói a exploração da América, pelos portugueses, atraídos pelos fascínios da personagem Iracema, que, na verdade, funciona como representação do continente americano, com O Corpo de Cleópatra Adelino Timóteo canta esses fascínios apaixonado, como se a revelar as perfeições exclusivas que ainda atraem o mundo inteiro ao berço da humanidade. Este é um canto à mulher africana, que não precisa de um par de extensões ou de cremes para ser bela. Pegando na Cleópatra, é a autenticidade que o poeta recupera, no mesmo instante que canta África como o ponto zero da evolução.

Portanto, se as mulheres são como as ilhas, e nós sabemos o que as ilhas representaram para os que levaram semanas ou meses a fio a navegar, é lúcido que O Corpo de Cleópatra ou de África ofusque todo o mar à volta, e traga para estas latitudes tantos Júlio César e Marco António. A cor do sexo justifica.

“Corpo de Cleópatra”: um canto de Adelino Timóteo para África

domingo, 3 de julho de 2016

“Zaperekeke”

A função da música é dar às pessoas o caminho da beleza e de Deus. É caminhar na beleza de um sonho e na imensidão do amor. O talento é dado para servir e repartir, o contrário não serve. Não há cache que pague isso.Valdemar Bastos (músico)

Na centelha de hoje vou falar-lhes do conceituado músico João António Estima, ou simplesmente, João Estima. Não apresentarei o currículo do músico, como alguns desejariam, mas falarei da terapia das suas canções, numa altura em que a sociedade moçambicana padece de podridão moral. A falta de emprego e de oportunidade empurram algumas pessoas, sem arcabouço musical, para o mundo da música. Com a ajuda de potenciais patrocinadores, em condições de concorrência oligopolista, esses vadios azinha são colocadas no galarim da pirâmide da fama. As canções, quase todas desprovidas de apreciáveis conteúdos musicais, são aplaudidas pelas turbas delirantes. Dizer algumas asneiras é uma forma de manifestar a ignorância, perdoa-se.O que não se pode tolerar nem perdoar é a proliferação de pacóvios que utilizam a música para promover a mediocridade. Estão a comprometer a qualidade de vida das gerações futuras, porque a música é também uma forma de ensinar. Tudo aquilo que vem rápido vai fácil. Este é o veredicto de muitos músicos que atingiram o poleiro da fama sem nunca terem arregaçado as mangas, tal como os cágados que são colocados em árvores.
Dizia Mário da Graça Machungo, antigo presidente do Millennium BIM, que cágados não sobem em árvores. Se virem algum numa árvore é porque alguém o colocou lá. Prepare-se uma rede elástica, para quando cair, não possa aleijar-se.Temos disso na música, por culpa dos patrocinadores e do estrabismo étnico-racial. Tal como diria o meu amigo Nkulu, em desertos há sempre alguma vegetação, embora escassa, para fazer a diferença. João Estima é um oásis no seio do deserto. Alguns sofalenses dizem com toda a legitimidade que o povo estima o Estima, tanto quanto as músicas. Para quem a boa saúde não lhe assiste, as músicas de Estima são de facto uma terapia. Penso que os médicos, em lugar de recomendarem drogas que só reduzem a vitalidade do fígado, deviam prescrever as músicas de Estima, para o saneamento da alma. É difícil ouvir uma composição musical de João Estima e a pessoa ficar indiferente. As músicas estão carregadas de pedagogia e servem para todas as idades e géneros. Há algo de nostálgico. Não provoca masoquismo, pelo contrário, são temperantes e reconfortantes.
Em “Zaperekeke” (o mesmo que dizer “entregue-se”), João Estima faz um forte apelo à Renamo no sentido de se juntar aos esforços do governo e de outros sectores da sociedade para o fim do conflito militar. Escrita no auge da guerra dos 16 anos, o cantor em referência, aconselha aos guerrilheiros da Renamo o seguinte:“Entregai-vos. Mato é para cobras. Venham participar em actividades de desenvolvimento do país.” Esta música conquistou a intemporalidade e ainda hoje continua a fazer todo sentido esse apelo. João Estima é também um profeta. É comum alguns pseudo-músicos quando atingem a “loucura” da fama esquecer suas origens. Diferentemente desses pseudo-músicos, João Estima imortaliza a sua terra natal (Marromeu). Através da música “Marromeu mwananga…ni mwathu…kundikomera”, o seu primeiro e único trabalho discográfico gravado em 2010, Estima exalta o distrito da sua natalidade e afirma que “… por mais que vá disfrutar do bem e do melhor na diáspora, Marromeu lhe agrada. Aqui nasci, aqui estudei, aqui trabalhei. Marromeu agrada-me, a par da sua gente, também pelo seu desenvolvimento.”Em outra composição musical intitulada Rosita, o cantor homenageia à sua esposa Rosa Rosário (Rosita). Estima declara a sua amada que “Tu és minha esposa. A primeira e única que Deus me deu. A mãe dos nossos filhos.” É sem dúvida uma homenagem que faz, não apenas a Rosita, como também a todas mulheres do país e do mundo em geral (amém). João Estima também enaltece os feitos do antigo presidente da República Armando Guebuza. Em “Tinapereka takhuta kuna pai Guebuza”, o cantor agradece pela construção da linha ferroviária de Sena, que passa por Marromeu.
Para Estima (julgo que este é o sentimento de todos os moçambicanos), a construçã0o desta linha contribuiu para reduziu-se os preços astronómicos das passagens aéreas em curso no país. A este propósito o autor goza “Subo o comboio como se estivesse a subir avião. Com a linha de Sena, todos os caminhos hoje vão dar à Marromeu.” Não reconhecer este feito, independentemente do que hoje se diz sobre Armando Guebuza, é uma falsa cegueira de quem não quer ver.O talento de João Estima é ímpar. Pelos serviços que têm prestado à nação moçambicana, através da promoção dos valores culturais, João Estima merecia uma homenagem pública por parte do governo provincial de Sofala. Sei que a Excelentíssima Senhora Governadora de Sofala, Maria Helena Taibo, tem feito muito pelos músicos sofalense. Para ela, Senhora Governadora, vai também uma palavra de homenagem. ZICOMO e um abraço nhúngue ao meu amigo de infância B. Chuva.
WAMPHULA FAX

segunda-feira, 27 de junho de 2016

“A cor dos bichos”

Resultado de imagem para calane da silvaMesmo depois de ter sofrido o assalto que lhe custou a perda de três obras inéditas – um romance e dois livros científicos –, que apenas aguardavam pela edição, Calane da Silva não descansa. Desta vez junta-se a Ana Paula Oliveira para uma aventura ao universo literário infantil.Trata-se da colectânea de contos intitulada “A cor dos bichos”. A obra criada em apenas dois meses aborda a natureza, no caso, os animais. Mas, segundo explicou o escritor, a natureza é aqui resgatada como um ensinamento “para sermos mais humanos, para sermos mais compreensivos em relação ao outro e, sobretudo, não olharmos às pessoas pela cor da pele, pela sua ideologia, pela sua maneira de estar e pensar. Temos que aceitar o outro como ele é”, daí que esse livro tem uma grande importância simbólica.
Outro dado interessante desta obra é que Calane da Silva e Ana Paula Oliveira, com patrocínio de uma instituição bancária do país, prescindiram dos direitos do autor. Por isso, serão distribuídas, numa primeira fase, três mil livros gratuitamente às escolas, esperando que o número cresça até seis mil exemplares.Este projecto não deixa de combinar com a iniciativa ligada ao Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, “Moçambique meu sonho”, no qual Calane e outros artistas fazem parte. Neste momento, foi lançado um concurso para melhorar a leitura, escrita e a capacidade de desenho de seis milhões de crianças. “Este lançamento que vai decorrer quinta-feira, na livraria centenária Minerva Central, em Maputo, está preocupado em colocar o livro às crianças nas escolas”, frisou o escritor.O co-autor não deixou de referenciar que este projecto é muito interessante para inspirar todos os autores a contribuir para que o livro chegue aos estudantes.
Ana Paula Oliveira estreia-se nas lides literárias em grande, ao lado do embondeiro da literatura moçambicana. Ao explicar como essa co-autoria nasceu, Calane disse apenas que o facto de serem amigos e por ter acreditado no seu talento pesou para essa colaboração.

Aliás, “no livro ela tem mais contos do que eu e nós não assinamos as estórias, dando a impressão que foi escrito por duas mãos. E isso é um outro tipo de parceria muito importante, não há aqui um ego inflamado, deixamos que o livro fluísse dessa maneira, também um facto muito interessante do ponto de vista literário”.Calane da Silva passeia por quase todos os géneros literários, mas com destaque aos livros investigativos linguístico-literária.Actualmente, o escritor explora uma área pouco abordada que é a Antropologia Espiritual. Mas ficou feliz quando num seminário internacional que aconteceu em Portugal, seu colega de painel falou sobre Ecologia Espiritual. “Isto quer dizer que estas matérias hoje já são do fórum académico e que a vanguarda dos universitários olha para este lado holístico e espiritual da própria ciência”, finalizou.

domingo, 24 de abril de 2016

Cintura tropical

O mau-tempo tardou o início do show, mas não estragou a festa da 5ª edição do Festival Tropical Zouk. Só às 20:15h os instrumentos soaram na pista do ATCM. E a banda Mozpipa teve a missão de abrir o concerto e chamar pelo público que já não aguentava com a demora. Mas o auge da festa deu-se com as performances de Messias Maricoa e Anselmo Ralph.O macua de apenas 22 anos estreou-se em grande, ao lado de Anselmo Ralph, com quem teve oportunidade de interagir e tirar fotos antes da actuação do angolano. Se medirmos a qualidade da performance pelo calor dos aplausos, diríamos que os artistas empataram.Maricoa cantou três músicas, mas parece que o público só tinha ouvidos para uma. Aliás, a cada verso dito vinha um “nhanhado” sei lá de onde. E quando chegou finalmente a hora da música, a azáfama contagiou o auditório. Para intensificar os ânimos, o jovem, inocente que é, foi medir a pulsação do público mais perto e quase que lhe retiravam o braço. As meninas puxaram-no, beijaram-no, choraram, gritaram e o jovem só escapou porque o socorro não tardou. Voltou ao palco, recomposto, e continuou a soltar as suas cordas vocais como mandam as normas. A música, como é comum em actuações ao vivo, foi alongada, mas parece que ninguém percebeu pois “a chama ainda estava acesa”.
Festival do Zouk 2016Já de Anselmo Ralph não se diz muita coisa. Por todos motivos… primeiro porque não é dúvida para ninguém que o angolano granjeia grande talento e, segundo, porque não é próprio do seu calcanhar decepcionar. E assim foi. Com a sua banda, comandou o palco por um tempo alargado. Cantou as músicas antigas e outras mais recentes. Do início ao fim, o público cantava com o rei do R&B que se abdicou desse estilo na noite de ontem, afinal, o dia exigia músicas passadas.   
Mas não é de se esquecer outras performances. Júlia Duarte carimbou a sua marca pela quinta vez. Desde que o festival existe nunca faltou. Desta vez mostrou os seus dotes de dançarina. Juntamente com o estilista Feliciano da Câmara, aventuraram na dança e aumentaram emoções.
Dos estrangeiros, Mika Mendes foi o primeiro a pisar o palco. Primeira vez em Maputo, porém actuação natural e recíproca com o público. Por isso, o artista considera o calor da plateia como um convite para brevemente voltar. Tropical Band e Lutchiana foram menos aplaudidos, contudo dançados. O zouk estava em alta nas suas actuações. Os dois colectivos transportavam-nos para o passado. Os antigos sucessos rebobinaram mentes de alguns expectadores que riscavam a pista com tamanha mestria nos pés.E o espectáculo estendeu-se noite adentro e só pela manhã Pérola subiu ao palco. Expulsou o sono que dominava a maioria e prendeu aqueles que esperavam por Damásio, quem só escalou o palco por volta das 9h00.Assim foi a 5ª edição do maior festim tropical que o país asiste há cinco anos, entre chuvas, vendavais e atrasos, porém com nota positiva do público.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Saia curta

Quando percebeu a investida do
homem ela lembrou-se dos
conselhos da mãe: Põe capulana
filha. O teu corpo de mulher,
minha filha, é como um país. Um
país não deve andar de saia curta,
a vulgarizar as suas riquezas, a
expor as cicatrizes íntimas. Há
estrangeiros sérios, que querem
parcerias sérias, também há
políticos sérios, mas se vêem um
país assim, de saia curta, vão se
aproveitar. Se todos os países
tivessem mães que lhes
aconselhassem nem haveria
guerras neste mundo, garanto-te.
Mas uma menina tem mãe para
aconselhá-la. Põe capulana minha
filha. Tapa as vergonhas. A honra
de uma mulher é como a paz de
um país. Deve ser bem guardada
debaixo das saias.
– Hiii!!!
Com o grito espremido das
vísceras, a menina retraiu o
ventre em sobressalto. As duas
mãos, com gestos gémeos,
repeliram as intenções do
homem. Uma no peito grisalho
empurrou-o, enquanto a outra
afastava a mão dele dali donde é
fragil a paz da adolescência.
– Não tenhas medo – convencia o
homem.
– Aqui é o futuro tio. Futuro não
se chega hoje. Só amanhã. –
Repetia de cor e salteado os
conselhos maternos. – Minha mãe
disse que aqui é a paz da mulher.
A paz deve permanecer virgem.
Estavam deitados, pareciam duas
linhas do horizonte sobrepostas.
Uma em alvorada e a outra
anoitecendo. Ele queria anoitecê-
la. Ela queria amanhecer-se nele.
Ele queria o escuro, o pecado,
sexo. Ela queria a luz, as flores, as
borboletas, beijinhos, como nas
telenovelas.
O escuro entrava devagarinho
pela janela. As bocas assobiavam
uma na outra. Só ouviam a
respiração um do outro. Nem a
voz infantil da menina a chamá-lo
“tio” lhe trouxe o pudor de ter
idade para lhe ser avô.
– Hiii, tio..
– Fica calma, não vai doer.
– Hiii, tenho medo. Minha mãe
disse que...
As portas e as janelas de uma
mulher abrem-se com promessas.
Acariciou-lhe as tranças do cabelo
e prometeu:
– Vou te comprar extensões.
Ela sorriu receptiva. O rosto
ganhou esplendor de pétalas. Era
uma menina de muitos recursos
naturais: no centro do corpo o
volume do quadril, e a norte as
manguinhas do peito, ainda que
verdes, mas já comestíveis, aos
olhos dele. Olhou para ela de cima
para baixo, de baixo para cima
contemplando as delicadezas
realçadas nos trajes adolescentes.
Sorveu o fio de baba que lhe
escorria pelo canto do lábio.
Deixou a mão seguir o percurso
das vontades. Partiu do sul, subiu
até o joelho. Devagarinho,
ensinando a vontade a não ter
pressa.
– Hiii, tio...
Fez outra promessa e ela mais
receptiva. O corpo tem códicos
complexos, precisa ser decifrado
lentamente. A mão subia para
baixo da saia curta. Começou a
pôr-lhe legendas no corpo,
desflorá-la das roupas. Passeava
pelas localidades da cocha tenra,
os planaltos do quadril farto, sem
pressa. Contornou-lhe o Inchope.
Passou pela Gorongosa traseira. A
flora da penugem adolescente. O
cheiro do mato. Chegou a
Muxúngue. A situação em
Muxúngue estava tensa, nervosa,
ela não o deixou entrar, de
joelhos colados um protegendo o
outro.
– Minha mãe disse que aqui é a
paz da mulher. A paz não deve
sangrar.
– Calma. Não dói nada.
– No Muxúngue não tio.
Uma última promessa escancarou
as licenças. Medo. Hesitação. O
hímen. A dor. Gemidos. Depois
gritos. Ai. Ui, devagar tio.
– Fica calma.
– Está a doer tio. Pára. Pára.
O coito é uma guerra entre
corpos. O cio é um exército. O
homem atacou-a grunhindo
prazeres. Emboscou-a com braços
e pernas. Investia com a bacia
movimentos bélicos. Desatou aos
tiros, tiros, tiros sobre ela.
Desarmou-a. No fim gargalhou,
arfando. Limpou o suor e o
sangue no corpo, nas mãos, nas
garras e nos dentes. Devolveu a
AKM à braguilha e foi-se embora
sem cumprir as promessas.
Desamparada e suja, o vento
soprava-lhe à memoria os
conselhos da mãe: O corpo é um
país onde não há democracia
minha filha. Por baixo das saias
está a paz da mulher. Põe
capulana filha. Soluçou prostrada.
Um rio de arrependimento
escorreu-lhe a face quando sentiu
que o corpo assim caído e
desonrado era um país no chão,
estuprado, usado, a sangrar pelo
Muxúngue.


Por Helder Faife