domingo, 1 de julho de 2012

Mu-China

Era costume vê-lo, à sombra da sua casa, ou à da mafurreira que crescera frondosa no quintal, sentado numa cadeira de descanso, com os mãos pousadas sobre o ventre. Mal se movia. Se o fazia era apenas em casos de extrema necessidade. Parecia cansado de viver e naquele lugar aguardasse a morte iminente.A sua residência era a dos celibatários, triste e sem calor. Nunca a vizinhança o viu na companhia duma mulher ou de crianças. Em raras ocasiões recebia visitas de amigos, que lhe traziam mantimentos e por lá pouco se demoravam.Habitava uma casa de um único compartimento, no fogo número 13 da rua do Chibuto, adjacente à esquadra da polícia e ao posto sanitário. Novo residente no bairro, muitos dos seus vizinhos desconheciam a sua proveniência, os seus hábitos e ocupação.Em algumas manhãs era frequente vê-lo a sair de casa, a atravessar as ruas, a cortar pelos atalhos da Mafalala, em direcção à cidade. Se olhos investigadores o seguissem, vê-lo-iam terminar a suas jornadas no Hospital Miguel Bombarda.A sua figura despertava a curiosidade, não só da vizinhança, mas também a daqueles com quem se cruzasse nos caminhos. Vestia-se com muito aprumo, de camisas imaculadas, muito folgadas para o seu corpo franzino, e denunciavam quanto esforço fazia para camuflar a dilatação do ventre. As calças cingiam-se sobre o púbis, como se o cós das mesmas o ferisse ou lhe causasse algum desconforto.Semanas decorridas, em vez de camisas passou a envergar túnicas que lhe desciam até ao meio das coxas. E o seu andar era peculiar: lento, de quem sofre com o peso e a fadiga do seu próprio corpo, os braços afastados do corpo, como se o contacto o inquietasse; a barriga volumosa empinava-se como sucedia com as das mulheres em estado de gravidez.\   Aquela não era barriga de obesidade, descaída e flácida, como sugeriam alguns, que viam naquele homem um cavalheiro que vivia uma vida faustosa, que comia e bebia do bom e do melhor, um ricaço que vivia de rendimentos. Não! A dele era firme, arredondada e centrada, e crescia do mesmo modo como o fazia qualquer gravidez.   “ A comadre não acha que este nosso vizinho está de grávida?”, suspeita da tia Devessana, vizinha de lado do aludido.
   “ Como pode ser isso? Onde é que a vizinha já viu algum homem ficar de grávida?”, dúvida na boca da tia Ximamate, embora em silêncio alinhasse na suspeita.
    “ Só falo por falar, mas é muito estranho, não acha?”, escusava-se a Devessana.
   “ Mesmo se for gravidez como é que ele vai dar o parto? Às vezes, a comadre diz cada uma!...”, era a dona Zaituna que contra-atacava, numa fingida defesa do vizinho, porque a si também, com franqueza, causava estranheza o facto daquele embrulhar-se em roupas largas, tal como procediam as mulheres grávidas.
   “Louvado seja Nosso Senhor!”, exclamava a irmã Leonor Mu-China, de braços levantados, escandalizada com o que escutara das vizinhas. Era uma beata convicta e presença assídua no confessionário do padre Henrique.“O nosso bairro virou Sodoma. Deus nos livre destes pecadores!”.
   “ Aquilo é obra de algum invejoso. Não se acautelou com o que comia e puseram-lhe venenos na comida, e o resultado aí está! Conheço um caso que aconteceu lá em Lionde, dum conhecido dos meus pais, que foi vítima de um feitiço, depois de lhe deitarem remédios num prato de farinha com carne de cabrito. A barriga dele cresceu que até parecia uma gravidez. Aquele homem quase que arrebentava! Toda a gente dizia o que vocês estão a dizer; mas a verdade é que aquilo era um feitiço que a própria mulher lhe deitou. Valeram-lhe os cuidados de um curandeiro que o tratou e tirou-lhe do estômago pedaços de cabelos e duas orelhas de cabrito”, intervenção da vizinha Eugénia Ntivane, conhecedora dos meandros da magia negra e do feiticismo.
Os sipaios da esquadra quando vissem o homem da casa número treze apontavam para ele com os lábios esticados e escarneciam:
   “Aquele arranjou a bonita! Não acha, nosso cabo?”, cochichava um deles.
   “Ele lá sabe o que andou a fazer por aí...”, respondia o cabo, a sorrir com metade da boca. “Já vi muitas coisas na minha vida, mas esta ultrapassa os limites: um homem grávido!  I  massinguita, uma abominação, um sacrilégio!”.
   “ Sim, o fim do mundo já chegou!”, corroborava o sipaio coscuvilheiro.
 *
 Contados os meses pelos calculadores mentais dos vizinhos, aproximava-se a data prevista para o eventual parto do homem grávido. O que, para desespero de todos, nunca chegou a suceder!
Segundo se veio a saber através da senhora enfermeira Isabel, em serviço no nosso posto sanitário, o homem grávido foi internado numa enfermaria de Medicina no Hospital Miguel Bombarda, onde lhe diagnosticaram uma Cirrose Hepática, da qual se encontrava em franca recuperação e, daí a dias, teria alta e regressaria ao convívio com os seus vizinhos, para teceram outras atoardas à volta da sua vida.       
Aldino Muianga, in “Caderno de Memórias”