terça-feira, 12 de julho de 2016

“Corpo de Cleópatra”

As mulheres são como as ilhas: sempre longe, mas ofuscando todo o mar em redor
Mia Couto

É bem provável que aquele excerto de Mia Couto, extraído de Jerusalém, faça todo sentido, pois, além dos contornos que se confundem com as reentrâncias e saliências das ilhas, as mulheres, de facto, têm esse dispositivo natural de ofuscar tudo através da sua estrutura cativante. Coisa dos céus, dos deuses ou dos santos traquinas, que, diante da arrogância masculina, urdiram um conluio para a controlar ou desvia-la de alguns intentos. E nesta maldição – ou bênção – caímos todos, inclusive os poetas. Aliás, sobretudo eles, afinal, os garimpeiros da palavra, em muitos casos, fazem da imagem feminina uma razão de existência, um modo de ser e um instrumento que lhes permite lapidar os encantos do sonho imortalizados na alma de quem lê.
E um dos desses poetas incapaz de desviar o foco às mulheres é Adelino Timóteo, por isso, no seu livro mais recente, Corpo de Cleópatra, o autor segue os seus instintos naturais e canta loas à rainha egípcia com todas as notas dos acordes. Tendo Cleópatra como pretexto para a viagem pelo seu mundo interior, o poeta, neste livro com 59 páginas, põe-se numa aventura pelo seu continente, como se o propósito da odisseia fosse, mais que tudo, resgatar os passados mal contados. Então, focando-se numa das civilizações mais afamadas do mundo (Egipto Antigo), Timóteo retira de lá uma das imagens mais sedutoras, e, como se alguma vez a tivesse visto – daí o desejo lascivo –, sujeita-se a endeusar, de forma imaculada, Cleópatra e seus predicados. E o propósito, se tiver que existir algum, passa por libertar o que África tem de melhor: a beleza em potência.
Tecendo versos sobre uma notável rainha egípcia, este livro de Adelino Timóteo não deixa de nos convidar a uma reflexão em torno das semelhanças existes entre aquela imagem feminina, soberana por excelência, e África, um continente que à semelhança do que sucede com Cleópatra desperta sensações imensuráveis nos homens de cá e de outras proveniências. Cada um com interesses diferentes; cada um com fantasias particulares de aprofundar os seus desejos. Esta colectânea de poemas de Timóteo engrandece a terra africana através de uma entidade local, quase na mesma lógica de pensamento que a de José de Alencar, no livro Iracema.
Enquanto o escritor brasileiro reconstrói a exploração da América, pelos portugueses, atraídos pelos fascínios da personagem Iracema, que, na verdade, funciona como representação do continente americano, com O Corpo de Cleópatra Adelino Timóteo canta esses fascínios apaixonado, como se a revelar as perfeições exclusivas que ainda atraem o mundo inteiro ao berço da humanidade. Este é um canto à mulher africana, que não precisa de um par de extensões ou de cremes para ser bela. Pegando na Cleópatra, é a autenticidade que o poeta recupera, no mesmo instante que canta África como o ponto zero da evolução.

Portanto, se as mulheres são como as ilhas, e nós sabemos o que as ilhas representaram para os que levaram semanas ou meses a fio a navegar, é lúcido que O Corpo de Cleópatra ou de África ofusque todo o mar à volta, e traga para estas latitudes tantos Júlio César e Marco António. A cor do sexo justifica.

“Corpo de Cleópatra”: um canto de Adelino Timóteo para África

domingo, 3 de julho de 2016

“Zaperekeke”

A função da música é dar às pessoas o caminho da beleza e de Deus. É caminhar na beleza de um sonho e na imensidão do amor. O talento é dado para servir e repartir, o contrário não serve. Não há cache que pague isso.Valdemar Bastos (músico)

Na centelha de hoje vou falar-lhes do conceituado músico João António Estima, ou simplesmente, João Estima. Não apresentarei o currículo do músico, como alguns desejariam, mas falarei da terapia das suas canções, numa altura em que a sociedade moçambicana padece de podridão moral. A falta de emprego e de oportunidade empurram algumas pessoas, sem arcabouço musical, para o mundo da música. Com a ajuda de potenciais patrocinadores, em condições de concorrência oligopolista, esses vadios azinha são colocadas no galarim da pirâmide da fama. As canções, quase todas desprovidas de apreciáveis conteúdos musicais, são aplaudidas pelas turbas delirantes. Dizer algumas asneiras é uma forma de manifestar a ignorância, perdoa-se.O que não se pode tolerar nem perdoar é a proliferação de pacóvios que utilizam a música para promover a mediocridade. Estão a comprometer a qualidade de vida das gerações futuras, porque a música é também uma forma de ensinar. Tudo aquilo que vem rápido vai fácil. Este é o veredicto de muitos músicos que atingiram o poleiro da fama sem nunca terem arregaçado as mangas, tal como os cágados que são colocados em árvores.
Dizia Mário da Graça Machungo, antigo presidente do Millennium BIM, que cágados não sobem em árvores. Se virem algum numa árvore é porque alguém o colocou lá. Prepare-se uma rede elástica, para quando cair, não possa aleijar-se.Temos disso na música, por culpa dos patrocinadores e do estrabismo étnico-racial. Tal como diria o meu amigo Nkulu, em desertos há sempre alguma vegetação, embora escassa, para fazer a diferença. João Estima é um oásis no seio do deserto. Alguns sofalenses dizem com toda a legitimidade que o povo estima o Estima, tanto quanto as músicas. Para quem a boa saúde não lhe assiste, as músicas de Estima são de facto uma terapia. Penso que os médicos, em lugar de recomendarem drogas que só reduzem a vitalidade do fígado, deviam prescrever as músicas de Estima, para o saneamento da alma. É difícil ouvir uma composição musical de João Estima e a pessoa ficar indiferente. As músicas estão carregadas de pedagogia e servem para todas as idades e géneros. Há algo de nostálgico. Não provoca masoquismo, pelo contrário, são temperantes e reconfortantes.
Em “Zaperekeke” (o mesmo que dizer “entregue-se”), João Estima faz um forte apelo à Renamo no sentido de se juntar aos esforços do governo e de outros sectores da sociedade para o fim do conflito militar. Escrita no auge da guerra dos 16 anos, o cantor em referência, aconselha aos guerrilheiros da Renamo o seguinte:“Entregai-vos. Mato é para cobras. Venham participar em actividades de desenvolvimento do país.” Esta música conquistou a intemporalidade e ainda hoje continua a fazer todo sentido esse apelo. João Estima é também um profeta. É comum alguns pseudo-músicos quando atingem a “loucura” da fama esquecer suas origens. Diferentemente desses pseudo-músicos, João Estima imortaliza a sua terra natal (Marromeu). Através da música “Marromeu mwananga…ni mwathu…kundikomera”, o seu primeiro e único trabalho discográfico gravado em 2010, Estima exalta o distrito da sua natalidade e afirma que “… por mais que vá disfrutar do bem e do melhor na diáspora, Marromeu lhe agrada. Aqui nasci, aqui estudei, aqui trabalhei. Marromeu agrada-me, a par da sua gente, também pelo seu desenvolvimento.”Em outra composição musical intitulada Rosita, o cantor homenageia à sua esposa Rosa Rosário (Rosita). Estima declara a sua amada que “Tu és minha esposa. A primeira e única que Deus me deu. A mãe dos nossos filhos.” É sem dúvida uma homenagem que faz, não apenas a Rosita, como também a todas mulheres do país e do mundo em geral (amém). João Estima também enaltece os feitos do antigo presidente da República Armando Guebuza. Em “Tinapereka takhuta kuna pai Guebuza”, o cantor agradece pela construção da linha ferroviária de Sena, que passa por Marromeu.
Para Estima (julgo que este é o sentimento de todos os moçambicanos), a construçã0o desta linha contribuiu para reduziu-se os preços astronómicos das passagens aéreas em curso no país. A este propósito o autor goza “Subo o comboio como se estivesse a subir avião. Com a linha de Sena, todos os caminhos hoje vão dar à Marromeu.” Não reconhecer este feito, independentemente do que hoje se diz sobre Armando Guebuza, é uma falsa cegueira de quem não quer ver.O talento de João Estima é ímpar. Pelos serviços que têm prestado à nação moçambicana, através da promoção dos valores culturais, João Estima merecia uma homenagem pública por parte do governo provincial de Sofala. Sei que a Excelentíssima Senhora Governadora de Sofala, Maria Helena Taibo, tem feito muito pelos músicos sofalense. Para ela, Senhora Governadora, vai também uma palavra de homenagem. ZICOMO e um abraço nhúngue ao meu amigo de infância B. Chuva.
WAMPHULA FAX