sábado, 19 de maio de 2012

Quem já viajou no mundo da mulher?

“Balada de amor ao vento”, da escritora Paulina Chiziane, representa um marco na literatura moçambicana. Publicado em 1990, o romance foi o primeiro no país a tematizar o quotidiano do universo feminino, evidenciando signos socioculturais que denunciam o lugar secundário reservado à mulher. Mais do que retratar a situação feminina em um Moçambique colonizado, Paulina Chiziane põe em discussão como as negociações transculturais e as mudanças de sistemas políticos apenas perpetuaram a[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 2]submissão feminina, ao mesmo tempo em que, dando voz a essa personagem marginal da história do país, contribui para a reconstrução da identidade moçambicana no período pós-colonial. Concentraremo-nos, neste estudo, em analisar tais signos e compreender como a autora os desconstrói em busca da reconfiguração da identidade nacional e da vitalização da presença feminina na construção do cenário histórico e cultural de Moçambique.
A história nos é contada pela personagem Sarnau, mulher marcada pelo amor e pelo abandono. Escrito em primeira pessoa, o romance caracteriza-se por um modo lírico de narrar, o que, segundo Inocência Mata, reforça o processo rememorativo. A narrativa tematiza a memória como veículo de revitalização identitária, no caso de Balada de amor ao vento, “uma memória individual que se confronta com os ditames de uma sociedade tradicionalista” (MATA, 2000, p. 136). A personagem inicia a história já envelhecida, saudosa dos tempos de juventude, contrapondo-os com o seu presente, miserável. Ao questionar-se sobre a existência ou não do amor, Sarnau faz uma comparação da mulher com a terra, convidando o leitor a conhecer o universo feminino:
Tenho uma filha crescida que ainda estuda embora já tenha estudado muito. Um dia disse-me que a terra é redonda. Por fora é toda verde e lá no fundo tem um centro vermelho. Como o melão. Que a terra é a mãe da natureza e tudo suporta para parir a vida. Como a mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silêncio da terra. Na amargura suave segrega um líquido triste e viscoso como o melão.
Quem já viajou no mundo da mulher? Quem ainda não foi, que vá. Basta dar um golpe profundo, profundo, que do centro vermelho explodirá um fogo mesmo igual à erupção de um vulcão (CHIZIANE, 2003, p.12).
A imagem comparativa da mulher com a terra, antes quase exclusivamente vinculada ao projecto nacionalista, vem agora carregada de subjectividade. É sobre a condição feminina no que diz respeito ao casamento, à poligamia, ao adultério que [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 ] Estudos (1) p. 3]Paulina se põe a tratar. Com isso, uma personagem antes ignorada pelo discurso dominante ganha voz, reinscrevendo a história sob outra óptica. O foco agora são as relações de género estabelecidas no interior da sociedade, na busca de uma tomada de consciência de que essas relações desiguais são construídas socialmente. Ana Mafalda Leite (2003, p.78), tratando da relação entre questões coloniais e questões patriarcais, afirma que o tratamento dos temas sobre a mulher pressupõe uma visão alternativa e crítica em relação à visão construída por escritores-homens, sendo que a narrativa de género estabelece um diálogo crítico com a narrativa centralizada numa tradição masculina, permitindo, também, um alargamento temático, a partir de dentro, criando uma abertura no cânone literário, em formação. Por sua experiência particular, Sarnau mostra-nos como a mulher é criada para servir ao homem, para suportar sua indiferença, sua agressividade, sua rejeição, como se isso fosse um fardo natural o qual a mulher deve carregar e aceitar. Em várias passagens do romance, a personagem narra não apenas os fatos que comprovam a desigualdade de género, mas também enfatiza o discurso produzido pelos mais velhos e, em especial, pelas mulheres. Ainda que seja a mais atingida com essas práticas, destaca-se, assim, que a mulher é a principal difusora dessa ideologia. Afinal, é a ela atribuída a responsabilidade pela criação dos filhos. Em razão do seu casamento, Sarnau participa de um ritual de preparação no qual as mulheres de sua família juntam-se para dar-lhe o que a personagem chama de “conselhos loucos”:As minhas mães, tias, avós, fecharam-me há uma semana nesta palhota tão quente e dizem que me preparam para o matrimónio. Falam do amor com os olhos embaciados, falam da vida com os corações dilacerados, falam do homem pelas chagas desferidas no corpo e na alma durante séculos, Sarnau, fecha a tua boca, esconde o teu sofrimento quando o homem dormir com a tua irmã mais nova[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 4]mesmo na tua presença, fecha os olhos e não chores porque o homem não foi feito para uma só mulher (CHIZIANE, 2003, p. 44).
A mulher traz no corpo e na alma as marcas dessa submissão secular, tendo-lhe sido ensinada como suportar tais açoites. Embevecida pelo fato de casar-se com o futuro rei da sua tribo, Sarnau demora a compreender o que significam tais palavras, questionando-se pela insistência dos ensinamentos: “Mas por que a tristeza? Não será o casamento um acontecimento feliz?” (CHIZIANE, 2003, p. 46). Quando ela própria experiência essas práticas, Sarnau rememora os ensinamentos na busca de suportar, resignadamente, a sua condição. Ao ver o marido com outra em sua cama, corre para aquecer a água do banho do casal e ao ser chamada, retorna pondo-se de joelhos perante o “soberano”, baixando os olhos “como manda a tradição”:
- A água está pronta?
- Sim, pai.
- Hum, parece que choraste. Morreu alguém?
Arremessou-me um violento pontapé no traseiro que me deixou estatelada no chão.
Minutos depois voltei à posição inicial. Enviou-me uma bofetada impiedosa que fez saltar um dente [...] (CHIZIANE, 2003, p. 56).
No artigo “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”, Patrícia Rainho e Solange Silva (2007,p.523) afirmam que em Balada de amor ao vento não há questionamento da condição da mulher na sociedade moçambicana, restringindo-se a uma escrita no feminino:... a personagem [Sarnau] não se questiona quanto a certos valores instituídos e se estes limitam ou não as suas escolhas enquanto mulher. Existe apenas a narração de toda uma vida no feminino, através de Sarnau, que é preenchida com o legado [Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 5]cultural da oratura moçambicana e um ‘passeio’ pela vida cultural de Moçambique em tempo colonial através daquela personagem feminina, criada por Paulina Chiziane.
Definir toda a condição social apresentada no referido livro como um passeio pela vida cultural de Moçambique parece extremado reducionismo quanto ao discurso construído em Balada de amor ao vento. Se em nível do enunciado Sarnau não questiona explicitamente os valores instituídos pela sociedade na qual está inserida, em nível da enunciação, podemos, sim, identificar a discussão da submissão feminina, o modo como tanto a poligamia como a monogamia submetem a mulher aos interesses masculinos e aos da sociedade em geral, a influência dos mais velhos na vida dos mais novos, a questão da assimilação, a negociação estabelecida entre a cultura tradicional e os diferentes discursos históricos conservando o controle patriarcal exercido sobre as mulheres.
O fato de a narradora ser uma personagem iletrada que vive em um território ainda colonizado também precisa ser considerado. Além do mais, as escolhas narrativas não podem ser pensadas ingenuamente. O tom irónico e satírico utilizado pela autora para narrar os acontecimentos dão a medida da consciência crítica dessas escolhas. O trecho citado acima, por exemplo, em que o marido utiliza-se de ironia para debochar da mulher por seu suposto ciúme, seguido de um pontapé no “traseiro” e uma “bofetada impiedosa” que lhe faz “saltar um dente” não pode ser encarado como simples narração de uma vida no feminino, é também denúncia da realidade da mulher em África. O próprio questionamento que Sarnau se faz sobre o casamento ser ou não um acontecimento feliz aponta para a reflexão sobre a insatisfação da mulher, sobre a desigualdade da relação nessa instituição, além de outros momentos presentes ao longo do romance que despertam tais discussões. Há várias passagens em que a personagem[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 6]se enxerga como uma mercadoria. Sarnau assim descreve o momento da negociação do seu lobolo, embalado pelo mugir das trinta e seis vacas que constituiu o seu pagamento:“[...] Fazem-se cumprimentos e discursos; dinheiros tilintam. Coloca-se na esteira a cabaça de rapé e o pano vermelho; exibem-se peças de vestuário, pulseiras, colares, meu Deus isto é uma feira, eu estou à venda” (CHIZIANE, 2003, p. 38). O discurso de uma de suas sogras também surpreende, com um tom que desumaniza as esposas no casamento polígamo: “[...] Nós estamos aqui a mais, para aumentar o número de cabeças neste curral, e dar o nosso esforço nas machambas, apanhar com os feitiços das outras, o que é que nós somos?” (CHIZIANE, 2003, p. 53). Porém, não é só na relação poligâmica que a mulher sofre. Sarnau também se torna vítima da monogamia.
No início da sua juventude, apaixona-se por Mwando, que ela diz ser “um rapaz diferente, fala bem, conversa bem e tem cá umas maneiras!...” (CHIZIANE, 2003, p.15). Mwando tem, na verdade, características de um assimilado, estuda para formar-se padre e, como cristão, defende a monogamia. Ambos se apaixonam e vivem um romance, mas Mwando deixa-a para estabelecer um casamento monogâmico com Sumbi, mesmo ao saber que Sarnau encontrava-se grávida. Já na sua maturidade, após ter abandonado seu marido polígamo e ser deixada pela segunda vez por Mwando, Sarnau engravida de outro homem que também não reconhece o filho por se dizer cristão: Sou tão feliz com os meus dois filhinhos. O Joãozinho também não tem pai. O homem soube encher-me a barriga para abandonar-me logo em seguida. O pai afasta-o da sua mesa, não o deixa conviver com os outros irmãos, diz que é por ele ser casado e para mais não fica bem a um cristão dar a entender que tem filhos por aí. Mwando também é cristão, mas abandonou-me com uma criança no ventre. Ser cristão é uma coisa, mas a perversão e o afastamento dos deveres paternais porque se é cristão, é coisa que ainda não entendo bem (CHIZIANE, 2003, p. 137).[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 7]

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