quinta-feira, 21 de abril de 2016

Saia curta

Quando percebeu a investida do
homem ela lembrou-se dos
conselhos da mãe: Põe capulana
filha. O teu corpo de mulher,
minha filha, é como um país. Um
país não deve andar de saia curta,
a vulgarizar as suas riquezas, a
expor as cicatrizes íntimas. Há
estrangeiros sérios, que querem
parcerias sérias, também há
políticos sérios, mas se vêem um
país assim, de saia curta, vão se
aproveitar. Se todos os países
tivessem mães que lhes
aconselhassem nem haveria
guerras neste mundo, garanto-te.
Mas uma menina tem mãe para
aconselhá-la. Põe capulana minha
filha. Tapa as vergonhas. A honra
de uma mulher é como a paz de
um país. Deve ser bem guardada
debaixo das saias.
– Hiii!!!
Com o grito espremido das
vísceras, a menina retraiu o
ventre em sobressalto. As duas
mãos, com gestos gémeos,
repeliram as intenções do
homem. Uma no peito grisalho
empurrou-o, enquanto a outra
afastava a mão dele dali donde é
fragil a paz da adolescência.
– Não tenhas medo – convencia o
homem.
– Aqui é o futuro tio. Futuro não
se chega hoje. Só amanhã. –
Repetia de cor e salteado os
conselhos maternos. – Minha mãe
disse que aqui é a paz da mulher.
A paz deve permanecer virgem.
Estavam deitados, pareciam duas
linhas do horizonte sobrepostas.
Uma em alvorada e a outra
anoitecendo. Ele queria anoitecê-
la. Ela queria amanhecer-se nele.
Ele queria o escuro, o pecado,
sexo. Ela queria a luz, as flores, as
borboletas, beijinhos, como nas
telenovelas.
O escuro entrava devagarinho
pela janela. As bocas assobiavam
uma na outra. Só ouviam a
respiração um do outro. Nem a
voz infantil da menina a chamá-lo
“tio” lhe trouxe o pudor de ter
idade para lhe ser avô.
– Hiii, tio..
– Fica calma, não vai doer.
– Hiii, tenho medo. Minha mãe
disse que...
As portas e as janelas de uma
mulher abrem-se com promessas.
Acariciou-lhe as tranças do cabelo
e prometeu:
– Vou te comprar extensões.
Ela sorriu receptiva. O rosto
ganhou esplendor de pétalas. Era
uma menina de muitos recursos
naturais: no centro do corpo o
volume do quadril, e a norte as
manguinhas do peito, ainda que
verdes, mas já comestíveis, aos
olhos dele. Olhou para ela de cima
para baixo, de baixo para cima
contemplando as delicadezas
realçadas nos trajes adolescentes.
Sorveu o fio de baba que lhe
escorria pelo canto do lábio.
Deixou a mão seguir o percurso
das vontades. Partiu do sul, subiu
até o joelho. Devagarinho,
ensinando a vontade a não ter
pressa.
– Hiii, tio...
Fez outra promessa e ela mais
receptiva. O corpo tem códicos
complexos, precisa ser decifrado
lentamente. A mão subia para
baixo da saia curta. Começou a
pôr-lhe legendas no corpo,
desflorá-la das roupas. Passeava
pelas localidades da cocha tenra,
os planaltos do quadril farto, sem
pressa. Contornou-lhe o Inchope.
Passou pela Gorongosa traseira. A
flora da penugem adolescente. O
cheiro do mato. Chegou a
Muxúngue. A situação em
Muxúngue estava tensa, nervosa,
ela não o deixou entrar, de
joelhos colados um protegendo o
outro.
– Minha mãe disse que aqui é a
paz da mulher. A paz não deve
sangrar.
– Calma. Não dói nada.
– No Muxúngue não tio.
Uma última promessa escancarou
as licenças. Medo. Hesitação. O
hímen. A dor. Gemidos. Depois
gritos. Ai. Ui, devagar tio.
– Fica calma.
– Está a doer tio. Pára. Pára.
O coito é uma guerra entre
corpos. O cio é um exército. O
homem atacou-a grunhindo
prazeres. Emboscou-a com braços
e pernas. Investia com a bacia
movimentos bélicos. Desatou aos
tiros, tiros, tiros sobre ela.
Desarmou-a. No fim gargalhou,
arfando. Limpou o suor e o
sangue no corpo, nas mãos, nas
garras e nos dentes. Devolveu a
AKM à braguilha e foi-se embora
sem cumprir as promessas.
Desamparada e suja, o vento
soprava-lhe à memoria os
conselhos da mãe: O corpo é um
país onde não há democracia
minha filha. Por baixo das saias
está a paz da mulher. Põe
capulana filha. Soluçou prostrada.
Um rio de arrependimento
escorreu-lhe a face quando sentiu
que o corpo assim caído e
desonrado era um país no chão,
estuprado, usado, a sangrar pelo
Muxúngue.


Por Helder Faife

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