quarta-feira, 11 de setembro de 2019

...desde que haja poesia


Em uma tarde de um sol quase tímido, estávamos os 3 que nem loucos, perdidos num dos belos jardins botânicos da cidade, para espicaçar sensações com poesia, algo que no final, deu um salto para além daquilo que se tinha pensado. Afinal, o assunto era poesia e o sumo que ela nos permite absorver. Sem dúvida um caminho que constituiu autêntico pretexto para falar da humanidade, da vida e matéria que a poesia é. A porta de entrada: a mais recente safra do poeta e autor Nelson Lineu, que dá voz aos outros que não ele, em “ asas da água “ (TPC, 2019).Lineu, sempre num estilo tímido, reservado e minimalista, mas com uma elevada capacidade de nos transportar para outras realidades. Falámos do seu tráfego literário, do seu lugar, da sua cidade Quelimane e da vida que cultivamos. Abaixo os detalhes da decolagem e do percurso feito durante os minutos acocorados sob a sombra de uma Acácia.

O que importa realmente dizer em forma de poesia?
O que não se pode dizer de outras formas. Para mim a poesia vale mais quando permite dar voz àquelas coisas aparentemente pequenas que nós atravessamos e habitualmente não damos por elas. Então, ela não tem que se cingir apenas aos assuntos que temos como grandes, mas que sejam fundamentais, tem que tratar assuntos importantes para a essência humana.

Quem fala nesta obra “ asas da água” ? É o Nelson Lineu ou é a própria poesia que fala com o leitor e conversa consigo? Eu simplesmente sou um intermediário entre o leitor e a poesia. Então, o leitor conversa com a poesia ou os leitores imaginários que eu tenho vão conversando com a poesia e ela por sua  vez interage com os leitores, estabelecem um diálogo contínuo.

Falando de essência humana, um dos assuntos fundamentais ao qual não podemos fugir é a morte. Julga que a morte pode ser tratada com a poesia?
Tenho a certeza que a morte não adia a poesia, mas a relação entre a poesia e a morte chamo-a de vida.

Acha que a vida é uma causa perdida? A vida....não é, não acho. Principalmente enquanto houver poesia.
Faz sentido viver? A escrever.
Poder explicar-nos como é que a poesia suporta-te no sentido de dar sentido à vida?
 Eu acho que a vida em si tem vários sentidos, cabe-nos escolher esses sentidos. Uma das companhias que escolho nesse sentido é a poesia. Nada acompanha-me melhor que a poesia.

Há um aspecto que define em parte aquilo que é a poesia, as figuras de estilo, declaraste que gostas de chão. Que chão os poetas pisam quando escrevem?
Os poetas pisam o chão imaginário, creio que o chão imaginário é dos mais fundamentais, desde que tenha areia.







E é a mesma forma de estar como quando se olha a uma criança nos olhos?
Por acaso a criança está sempre marcada na minha poesia, e é isso, acho que olhar para os olhos de uma criança, pensar e sentir a inocência desta, dá-te uma certeza das coisas que estão por vir, como se fosse uma profecia. É interessantíssimo, é este chão que, provavelmente, em algum momento, pode não existir mas que sempre  procuro quando vou escrever, a partir do olhar de uma criança.

Os livros têm vida? Mais do que sete.
Qual é a vida deste livro?
Eu acho que cada leitor vai dando vida. Detesto pensar que o livro começou a ser escrito e terá o desfecho na mão do autor. Muito antes de começar a escrevê-lo, as minhas vivências, as minhas leituras já davam indícios de começo desse livro, e digo que não terá fim, porque cada leitor vai continuar a construir o mesmo à sua maneira, quando for a ler ou a falar desses versos com as outras pessoas. De certa forma, sempre haverá uma outra vida para o livro, felizmente.

Escreve como se fosse no princípio de tudo isto ou escreve como quem está a continuar uma obra iniciada? Prefiro dizer que todos os poetas estão a escrever o mesmo poema, e eu estou a participar nesse poema.

Deixou Quelimane para trás mas não a deixou ficar, sentimos que carrega a cidade na sua alma, por exemplo quando escreve “ no leito materno/ eu bebia o rio/ a mordida no peito/ a mãe sabia/ o barco atracou ”...esta obra  e a terceira parte fala da avesegunda parte fala da  e no seu colo, por exemplo quando escreve "a outras realidades é regresso ou partida?
Primeiro, o livro está dividido em três partes, a primeira parte fala do rio, a segunda fala da folha, e a terceira parte fala da ave. O poema que cita é  os sinais do rio. Bem, estou claramente a falar do Rio dos Bons Sinais, que namora com a cidade de Quelimane, não falo apenas no sentido físico, mas imaginário também. Eu quero que cada leitor crie o seu rio dos Bons Sinais imaginário, mas que possa agregar um elemento ligado à infância ou memória de um determinado lugar-cidade. O convite é no sentido de o leitor unir os elementos fundamentais da infância que o liga à cidade como tal e as pessoas que estão à volta. A cidade e o rio são para mim figuras da existência de um lugar marcante.

 O poeta encara as necessidades humanas e seus desafios como um problema ou um catalisador que lhe impulsiona a escrever?
Eu acredito que os desafios da humanidade fazem parte da vida, não olho com angústia ou sofrimento algum, porque eu sei que mesmo as ciências e as artes surgiram a partir da necessidade de solucionar um problema. Em parte, a filosofia ensinou-me a ver dessa forma. Em outras palavras, a dúvida origina a busca de soluções de forma contínua.  É assim que se consegue a dita evolução humana.

A poesia se ensina? Podemos ensinar o país a ler poesia? Esta é uma pergunta difícil, mas eu não sei se se ensina, mas com certeza aprende-se.

Como é que o país todo reflecte-se na sua poesia  e como é que a sua poesia se reflecte no país?
Opa! O país reflecte-se na minha poesia, porque já estive em boa parte do país e tenho convivido com vários olhares, e esses olhares têm sido fundamentais para a minha escrita. A caneta se parece com cada olhar que eu encontro. A poesia tem a capacidade de condensar muitas marcas do nosso país, desde as pessoas, as expressões culturais, os sabores, hábitos, as vozes, as cores, isso tudo está lá.Por outro lado,  procuro trabalhar a poesia de forma que não só nos baseemos a partir do que lemos é um acto de observação do que há,  tem de ter em conta os outros sentidos. Afinal, temos muitos mais.

O poeta mente? O poeta representa, só para não dizer que o poeta é um fingidor.


“Ninguém como eu conhece o pudor dos insectos”. A quem quiseste representar neste poema?
Quis representar a folha. Este foi o último poema que eu escrevi, é a parte do poema que fala sobre a folha. Não se explica o poema mas eu gosto da ideia porque é a folha que está a falar, ganha a voz e se volta para os insectos. A folha é sempre atacada pelos insectos, então...provavelmente os insectos a ataquem porque a folha conhece o pudor deles.

Quem é a folha, quem é o insecto? O insecto é o poema, a folha é o autor.
E consomem-se? Claro.Quando o Lineu escreve, teme que se perca no poema ou que o poema se perca.Acho que o maior medo surge a seguir a publicação do livro…

Sente que pode ser devorado pelos insectos (poemas)?
Sim, sim, perder os poemas, como nas situações quando os filhos e filhas se desvinculam do agregado familiar e tomam os seus caminhos. Às vezes, há confrontos entre estes, o que é normal. Em alguns casos, o poema revela-se na sua qualidade. Por fim, já em livro, tomam o seu destino também. Aí é que chega a angústia e insegurança, quando o autor sente-se abandonado porque já não terá o constante diálogo com os seus textos. Surgem preocupações como: saber se os escritos serão bem acolhidos ou não, se terão leitores, se irão percorrer outros caminhos e por aí em diante…
A grande alegria é quando a seguir a isso, ouvimos dos leitores e de outras pessoas sentidos diversos do texto, que sequer se tinha noção. Isto leva-me a crer que a poesia é uma matéria da qual o poeta e o sujeito poético não devem se sentir donos, sendo que muitas vezes não sabemos a origem das palavras que nos visitam e se compõem belissimamente.

Lineu escreve curto e breve, quase minimalista e tímido. Isto é um acidente ou é propositado para evitar que a poesia se dilua?
Para este livro senti que precisava de um outro labor estético, e acima de tudo criar, não uma voz, porque são várias vozes que vão surgindo, mas uma certa consistência, ter um domínio desse tipo de escrita, e eu quis fazê-lo a partir do título, uma coisa interessante é que tentei trazer elementos que, a partida, não têm ligação entre si mas que com base nos textos vão ganhando a sua a própria vida. Isso dá um olhar diferente e quebra ideias estáticas e predefinidas. Há várias combinações que podem ser estabelecidas nesse sentido, abrem-se novas rotas e possibilidades, que se calhar no futuro sejam base para criação de referências ou cânones para ampliar outros universos que dialoguem.

Estudou e lê muito filosofia. Como é que o universo filosófico está presente no seu processo criativo?
Bom, no primeiro livro, isso foi uma questão difícil de separar, uma batalha que travei, não queria que a faceta filosófica se destacasse no livro, mas algumas pessoas disseram que ainda constava nos textos, infelizmente não me posso mutilar, o que há a fazer é tentar conciliar as duas facetas.



O filósofo nega-se a sair de cena?
Tento encontrar um certo balanço, manter o aspecto estético da poesia, a sua beleza, mas conservando muita profundidade de pensamento. Vejam que em cada poema há uma palavra que remete à vários cenários e gosto muito da ideia de existir uma multiplicidade de significações, dependendo da cultura, das influências, da experiência de cada um, e isso permitir fazer várias interpretações.Por exemplo, gosto do poema citado acima, porque é simples, mas profundo, sem recurso a linguagem rebuscada. Este poema está muito ligado à minha infância. É que deixei de mamar muito tarde e isso marcou-me bastante. São momentos que não se explicam, acontecem e ficam registados na memória.
Há exemplos de poetas que são mais herméticos mas há os que são mais simples, usam linguagem simples, refinada, como Mário Quintana e a Sophia de Mello Breyner Andresen, tocam assuntos do dia-a-dia, e quando ouves ou lês a poesia te identificas. Segue este do Quintana que diz:... “/por mais que tenham demolido / a gente continua a morar / na velha casa onde nasceu/”, poxa, isto é de uma beleza monumental que transmite uma grande emoção, simples, delicado e profundo. Não há uso de termos complexos, não quer dizer que não houve grande labor. E a Sophia diz: “/quando eu morrer/ voltarei para buscar os instantes / que não vivi junto do mar/”. Não há algo tão belo e intenso como isto. A poesia é isto, maravilha em estado de palavra.

 Estás consumido depois disto tudo?
Sim, estou, porque eu penso que a relação com poesia e a escrita se parece com o acto de ter relações sexuais, como tenho dito: só há um acto feito em simultâneo por duas pessoas, são relações sexuais, e o mesmo se dá na poesia e comigo como autor, quando se está no momento da escrita.

Voltarás à Quelimane?
Sempre volto, provavelmente não escreveria se não voltasse regularmente à Quelimane, neste caso refiro-me ao regresso através da escrita, não apenas no sentido físico. Na primeira parte do livro, faço questão disso, mas atenção, vai além do sentido geográfico da cidade de Quelimane, cada um pode elevar a sua cidade, o seu bairro, o seu distrito, no momento em que lê o texto. É isso, elevemos os lugares, mesmo ausentes.

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