sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

“Parece que nada vale a pena"

Ler Mélio Tinga é entrar num jogo em que o escritor te coloca numa casa velha,  abandonada e amaldiçoada a caçar fantasmas. faz assim na sua última obra de contos intitulada “a engenharia da morte” (2020) e na primeira “o voo dos fantasmas” (2018). O autor mostra-se obcecado pela morte e pelo sobrenatural. É um tipo “mal-assombrado”.Em caixa-baixa, “a engenharia da morte”, de pouco mais de 100 páginas é dividido em três cadernos, nomeadamente “dentro do corpo”, “inverno” e “a língua dos sonhos”. Nem tudo o livro é sobre a morte e o sobrenatural. Nem ele próprio se sente inapto para outas abordagens. Mas posiciona-se como quem gosta “muito de coisas que vão cruzando entre o fantástico e real”.

A verdade é que Mélio não consegue fugir da realidade. Nenhum dilema social lhe passa desapercebido. Escrever é-lhe um acto político. Toca indirectamente nas feridas do país. Visita o centro e norte de Moçambique e procura livrar-se de uma vez por todas destas guerras que nem os acordos de paz, muitos que foram assinados, conseguem travar.

É também um livro sobre corrupção e guerra que recordam os contos criminais. “Nunca me imagino um escritor político. há factos que marcam o nosso tempo e acabam fazendo parte do nosso dia-a-dia e das narrativas que construímos. A questão do conflito ou guerra, se assim quisermos, em cabo delgado, faz parte do nosso tempo. Enquanto escritores, é nosso papel dar alguma contribuição em relação a isso”, considera.

É aqui onde se tira uma das lições para o papel da literatura em tempos de crise, como a da pandemia do novo coronavírus. “Estes momentos fazem parte do momento do escritor enquanto constrói e pensa. essas coisas todas aparecem, por mais que não estejam no livro, acabam por fazer parte, mas não são a primeira coisa, são assuntos secundários”, disse. 

Mélio Tinga se faz sentir na sua nova obra. É um engenheiro que não esconde o rosto. Destaca-se por escrever na primeira pessoa do singular. É uma espécie de narrador e personagem. Ele se despe nos seus contos, como se narrasse frustrações e medos. conta-nos os seus pesadelos e desaba sobre os seus desamores. é também muito recorrente a figura materna. “Acho que é das coisas que acontecem de uma forma espontânea no texto. Fui criado por uma mãe solteira, provavelmente, isso tenha estado no futuro e apareça de forma espontânea, porque não tenho muita experiencia de ter um pai e conhecer o comportamento e explorar várias facetas. Tenho a imagem de mãe, então procuro explorar isso”, explica.

“a engenharia da morte” é um manual sobre os seus escritores predilectos. mas há autores como carlos drummond de andrade, que não fazem parte do seu mapa de favoritos. “Há poetas que a gente lê uma vez, são bons poetas e escritores, mas passam. quando digo que não está no meu conjunto de leituras, é porque há livros que para mim funcionam como um campo de oração. Há livros que estão sempre comigo. Leio sempre e funcionam como um campo de consulta, uma espécie de religião, iluminação”.

Mélio Tinga casa o humor e a ironia. crítica a sociedade actual das novas tecnologias de comunicação e informação. “As pessoas falam numa língua que não dominam. estamos todos os dias a assistir este tipo de coisa pela televisão e redes sociais. se as pessoas falassem mesmo na sua língua e o que estivessem a sentir realmente naquele momento, pareceriam mais autênticos e menos cómicos”, disse. Com mestria, maneja o silêncio n’conto transparente”, que para além de uma folha em branco, com apenas um título, que pode ser interpretado de diversas formas. o escritor prefere não fugir da ideia da morte. “A vida é uma coisa vazia!”.

“O conto transparente” é o auge dessa expressão mais profunda sobre a vida se quisermos olhar a morte de frente e de uma forma mais crua. “Parece que nada vale a pena (…) nalguns casos, desaparecemos e somos apagados da memória e já não somos mais nada. ‘O conto transparente’ é um pouco disso. é transparente, mas se calhar devia ser um conto vazio. Expressa o vazio por nada”, considera sem temer ser mal interpretado. “Não tenho controlo absoluto do cérebro das pessoas”, fecha.

Mélio Tinga é natural de Maputo e licenciado em “educação visual”, pela universidade pedagógica de maputo. Edita a revista “dezaine”. Fundou a plataforma “designe talk”.  Dirige o micro jornal de contos ventrículo. é colunista da “Literatas” e membro do movimento literário kuphaluxa. Seu texto intitula a antologia “O hamburger que matou jorge” (2017), chancelada pela Ethale Publishing.

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