sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Letras de sangue

 Destaque Rural nº 93 07 de Julho de 2020 DO IMPASSE MILITAR AO DRAMA  HUMANITÁRIO: APRENDER COM A HISTÓRIA E REPENSAR A INTERV

As guerras e os seus efeitos são temas recorrentes na nossa literatura. A guerra de resistência, a de libertação e a civil já ajudaram a pintar paisagens romanescas e deram-nos alguns personagens. A guerra de Cabo Delgado, que ainda se procura entender, ainda que já lá se passem três anos, parece mais uma para a galeria de paisagens e personagens sem rostos, que mais do que sugerir decapitações, sugerem o desconhecimento de quem está do outro lado da barricada. Enquanto se espera um grande romance, este género a que sempre custa encontrar o mundo em flagrante, a poesia sempre por cima do tempo em que se inscreve e se escreve começa a lançar as primeiras achas para iluminar a nossa ideia do conflito e ampliar a voz de quem morre enquanto os seus morrem. 

Cabo Delgado chega a literatura depois de passar pelo jornalismo, com as prisões, os desmentidos, as censuras e as mortes. Mas se o jornalismo é meramente informativo, ainda que no caso de guerras – e ainda bem - seja também especulativo e provocativo, a literatura é este campo por onde se expia a alma humana de quem e para quem se fala.

O que sabemos desta guerra e os efeitos sociais e económicos adiam o futuro que o pensávamos à porta, confronta-nos com a nossa humanidade enquanto qualidade inerente ao ser humano; compaixão, mas não enquanto pena como a contemporaneidade parece querer convencionar, mas compaixão enquanto compreensão emocional da dor alheia, enquanto sofrimento causado pelo sofrimento do outro e enquanto este desejo ingénuo que é aliviar a dor do outro.

Estes três poemas não interpelam a quem está nas trincheiras, nem toma uma posição em relação ao conflito propriamente dito. Não são remisturas da poesia de combate. São todos poemas contra a apatia de quem olha a guerra em Cabo Delgado como se não fosse dele, os mortos de Cabo Delgado como os mortos de um outro cemitério, que não é Moçambique.  

O poema “Os mortos de Muidumbe” de Nelson Saúte talvez tenha sido o primeiro exercício neste sentido. Escrito depois da morte de 52 jovens às mãos dos insurgentes que se negaram a engrossar-lhes as fileiras. Este poema, que é um abanão à sociedade, esfrega-nos na cara a inutilidade de uma vida alheia a outras vidas. É um poema-inquisitivo, incomodativo e combativo. “Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe?”, o primeiro verso-pergunta de um poema que se estende para lá dos oitenta versos, a lembrar o fluxo de consciência dos prosadores, é o autor a questionar a si ao mesmo tempo que questiona ao outro-leitor. As perguntas vão se sucedendo, as respostas estas é não chegam, mas há insinuações, provocações, que podem ser lidas a luz das rixas tribais que alguns especialistas da guerra em Cabo Delgado pensam ser mote do conflito. “Somos misericordiosos com os outros mortos/ e postergarmos os nossos mortos de Muidumbe./ O sangue vertido em Muidumbe não é nosso sangue?”. Saúte fala dos mortos de Muidumbe, como fala dos mortos de Mocímboa da Praia, Quissanga, Palma, Metuge, Macomia, fala dos mortos de Cabo Delgado, os mortos de Moçambique, velados sobre o silêncio da cobardia. Enquanto o conflito decorre, as interpretações desta guerra (será que já se pode assim chamar?) multiplicam-se, uma guerra que a estamos a descobrir enquanto descobrimos os recursos causadores dela. 

Mas parece ser ideia assente de que o conflito visa inviabilizar a exploração do gás e com esta inviabilização adiar ou cancelar o futuro prometido aquando das descobertas. E é a partir disto que se constrói o poema-clamor de Armando Artur, “Cabo Delgado clama por nós”. Outra interpelação aos leitores/sociedade. O autor chama para o texto a ideia de el dourado de que Cabo Delgado se mascarara (que prometia ser um contraponto a Maputo) da possibilidade de promessas goradas e desse desalento que é também produto dela. “Cabo Delgado clama por cada um de nós/ Porque há uma flecha rente ao ventre/ Para embaciar a estrela da nossa alvorada”. São imagens e metáforas que desconstruídas representam esta outra metáfora que é a sorte a esvair-nos entre os dedos quando a tínhamos tão perto e tão certa. É a guerra trazida pela mão da insurgência a matar o sonho moçambicano que tem – ou tinha, já não se sabe - em Cabo Delgado a terra de realizações.

Se o poema de Armando Artur guarda ainda uma réstia de esperança, até porque o título sugere à espera de uma acção de quem lê, o de Amosse Mucavele pode ser lido como um elogio fúnebre aos mártires da guerra em Cabo Delgado. Sagazmente intitulado “Lágrimas do nosso tempo”, com um pronome possessivo que não pode ser lido ao acaso, porque a Amosse, apesar de nascido pouco antes da guerra civil terminar e aquela guerra ser também dele por ser parte da nossa memória colectiva como moçambicanos, esta é uma guerra que marca a geração de que o poeta faz parte, a primeira que vivem de forma consciente e ardente. 

“Quando se mutila a esperança/ Não se pode traduzir a alegria no meio da renúncia/ Tal como uma casa em chamas/ Transcrita no monólogo do nosso tempo”. A esperança mutilada é pior que a esperança morta, a esperança mutilada é uma esperança que continua aqui, viva, mas que – para usar a metáfora de Armando Artur – embacia a estrela da nossa alvorada. Em Amosse Mucavele, a complexidade verbal dos poemas mistura-se a referências concretas (Quissanga, Muidumbe, Macomia, Metuge, Palma) como se quisesse afastar o espectro do abstracto a que se podia associar ao poema. Isto é sobre Cabo Delgado. E se dúvidas ainda podem ter subsistido sobre a dimensão elegíaca deste poema, a última estrofe é esclarecedora: “E de súbito/ Vestem-se de cinzas na ausência de abraços/Quando a paz se torna impossível”. São versos de dor e de sangue, de sofrimento e de mágoa, de morte quando já não há vida para viver. “Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe?”.

 

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