Há 31
anos, Ungulani Ba Ka Khosa estreou-se em livro, num período em que a literatura
moçambicana passava, eventualmente, por um dos melhores momentos até aqui. Na
década de 80, foi lançado o primeiro concurso literário do país, foi criada a
Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), e, enfim, foi lançada a primeira
revista literária moçambicana pós-independência, a Charrua, de que o nosso
escritor é co-fundador. Este foi um momento de ouro, que, inclusive, contribuiu
para a afirmação de uma escrita comprometida com a estética, por nela existir,
quiçá, os (des)equilíbrios cruciais à literatura. É neste contexto de reinvenção de uma arte,
num país recém-nascido, que Ba Ka Khosa ousa apresentar-se em obra, depois de
muito publicar na imprensa. Nessa altura, tinha 30 anos de idade e havia vivido
em todas as regiões de Moçambique.
E
então, o livro escolhido para a primeira aparição foi Ualalapi, colectânea de
contos, para uns, romance, para muitos, e novela, para os mais centristas.
Neste livro, um dos dois que constitui Gungunhana, obra ora lançada pela
editora Kapulana, Ungulani percorre os labirintos da história, e, fugaz,
aldraba a morte, retirando nela um personagem controverso (ora herói, por ter
travado toda uma luta contra o regime colonial português, ora vilão, por tanto
ter liderado ofensivas contra os chopes, uma etnia do Sul de Moçambique):
Gungunhana/ Ngungunhane. Ao ficcionar a vida do imperador de Gaza, homem
extremamente violento, Khosa constrói um cenário maquiavélico, que ao tirano
permite atingir o poder sem ameaças de o perder, delegando, por isso, a morte
do seu irmão, Mafemane, a Ualalapi. A partir dos conflitos, da ganância e dos
jogos de interesse instituídos na narrativa, Ungulani introduz-nos no
raciocínio de um ditador que, à imagem de tantos outros de terno e gravata, não
medem consequências no longo percurso ao trono. Por isso, esta é uma história
actual e com muitos anos de vida.
O
segundo livro que compõe a obra Gungunhana é intitulado As mulheres do
imperador, na qual temos um narrador didático como cicerone no prosseguimento
dos caminhos trilhados pelas rainhas de Gaza, na desnecessária viagem que
termina com um exílio delas na sua terra, mas longe da sua gente. Se Ualalapi,
essencialmente, ergue e derroca um império nguni, essa etnia de Ngungunhane, As
mulheres do imperador é mais uma história além das peripécias que ditaram o fim
de um reinado. Esta história produz-se na viagem pelo Sul de Moçambique, por
Portugal, São Tomé e, mais profundo, pelas crenças, dores, desassossegos e
sentimentos dessas rainhas pretas, desabitadas de si mesmas por terem
conquistado a preferência de Ngungunhane. Também por isso, dá-se nesta ficção a
grave degradação da personagem. Mas comecemos pelo primeiro livro.

Em As
mulheres do imperador essa degradação continua, quer em Ngungunhane quer nas
suas esposas. No caso do “leão de Gaza”, a situação é agravada porque, arrancado
da sua terra com as sete das tantas mulheres que possui, em Portugal, não fica
nem com uma sequer, um verdadeiro ultraje e castigo para quem tanto preza o
calor feminino. Além disso, mesmo tendo-se recusado a converter-se à religião
dos brancos, já dominado, o imperador é baptizado, passando a ter um nome português.
Morre triste e humilhado. Não obstante, separadas do homem, as rainhas de Gaza,
igualmente, experimentam a derradeira condição do marido. Logo, com a excepção
de Namatuco, tornam-se vulneráveis, passando a comer peixe e a desejarem ser
amarfanhadas pelos braços dos homens. E o facto de Namatuco ser a mais sisuda,
não a impede de se tornar uma personagem amarga, pois, desterrada de
Moçambique, perde o contacto com os seus espíritos, daí a incapacidade de
enxergar o futuro. Portanto,
este Gungunhana encerra nas suas linhas uma preocupação estética alicerçada a
uma história que se vai diluindo. Esta é uma porta de entrada para quem se
preocupa com o passado e com o presente de Moçambique. E faz sentido o livro
ser publicado no Brasil, afinal em causa está o conhecimento sobre a
humanidade, que não se esgota na fronteira dos nossos pés, que nos faz
proprietários da nossa própria voz. A degradação da personagem manifesta em
Gungunhana também é nossa, por aceitarmos ser parte de uma história cujos
protagonistas são os narradores do esquecimento, esses que nos afastam da nossa
terra e das nossas particularidades.(Por José dos Remédios)
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