O académico Carlos Serra, que morreu ontem
em Braga, Portugal, vítima de um cancro diagnosticado muito recentemente, era
uma das mentes mais brilhantes do pensamento sociológico moçambicano, um
combatente pela mentalidade sociológica – ou seja, alguém que lutou
aguerridamente para fazer conjugar a teoria com a realidade prática, tal como
Aquino de Bragança (e Ruth First) inculcou nas fornadas iniciais de
investigadores do Centro de Estudos Africanos (CEA), nos anos 80.
Era um dos mais engajados intelectuais
moçambicanos, em contraposição com o intelectual funcional, espécime que pulula
com tanta visibilidade na academia moçambicana dos nossos dias.
No inicio dos anos 70, Carlos Serra foi
articulista do Notícias da Beira. Jornalista! Um contemporâneo dele na época no
Chiveve lembra-se de “alguém cheio de excentricidades, um obstinado”. Quem tem
memórias exuberantes dessa altura na Beira é o poeta e sociólogo Filimone
Meigos. Não do jornalista, mas do professor de História. Quando soube da morte
de Serra, Meigos fez uma arqueologia serrana na sua memória.
E lembrou-se disto: “No Liceu, depois das
doses sobre o Império carolíngio, dos celtas e visigodos (...) tu foste o
pioneiro a falar-nos da História de Moçambique. Pela primeira vez ouvi falar
dos hotentotes, mwenemutapas, madzimbabwes e tais. Foste tu, mestre. E foste
mais longe: levaste-nos ao Monte Chinhamapere para, in loco, vermos as pinturas
rupestres...”.
O testemunho de Filimone Meigos recupera
outra faceta de Carlos Serra, sua primeira encarnação académica, anterior ao
sociólogo engajado: a de historiador. Em 1973, Carlos Serra vem a Maputo para
estudar História na UEM. Com a Independência em 1975, ele e colegas, já com
bacharelato concluído e com o “êxodo” de professores portugueses, se vêem
envolvidos na organização do Departamento de História da UEM. Felizmente, o
novo regime da Frelimo não mandou encerrar os cursos de ciências sociais.
A historiadora Tereza Cruz e Silva, antiga
directora do CEA, recorda-se do papel de Serra na elaboração do primeiro Manual
de História de Moçambique do pós-independência: “História de Moçambique:
primeiras sociedades sedentárias e o impacto dos mercadores 200/300/1886”. O
manual foi justamente editado pelo nóvel departamento, em colaboração com a
Tempográfica, então editora da famosa revista Tempo (na altura).
O manual foi dado à estampa em 1982. Cruz e
Silva recorda-se da obra como um “marco fundamental” porque foi o primeiro
livro de História de Moçambique, um país que ainda não conhecia da sua própria
história. Nessa vaga de engajamento académico nos primórdios da nova Nação, os
bacharéis assumiram as rédeas do ensino e trataram de organizar o novo curso de
História no quadro de um Moçambique independente. Carlos Serra esteve
profundamente envolvido nessa empreitada
Depois de alguns anos dedicando-se à
Historia no CEA, Carlos Serra faz uma viragem em seus objectos de Estudo.
Abraça a sociologia e é doutorado pela École Des Hautes Études En Sciences
Sociales, de Paris, onde se apaixonaria por figuras incontornáveis da
sociologia como Alain Touraine e Emile Durkheim.
Sobretudo Alain Touraine, em cuja obra ele
busca seu principal referencial teórico para compreender os vários “objectos” e
fenómenos que ao longo de quase três décadas viria a estudar, publicando livros
e organizando seminários a partir do seu minúsculo gabinete no CEA, onde nunca
chegou a ser Director pois, de acordo com a socióloga Conceição Osório, ele
sempre evitou os “jogos do poder”.
Uma etnografia do quotidiano
Sua produção sociológica é vastíssima, não
seria ele o sociólogo mais fecundo de Moçambique, de acordo com Patrício Langa,
Presidente da Associação Moçambicana de Sociologia. Como director de pesquisa e
co-autor, Serra estudou profundamente temas sobre identidades sociais,
estigmatização, conflito e mestiçagem, etc. Teve também uma incursão pela
sociologia eleitoral, problematizando o comportamento do voto centrado nas
primeiras eleições autárquicas de 1998, com seu livro “O Eleitorado
Incapturável”.
O sociólogo Elísio Macamo escrevia
recentemente à-propósito da profusão temática do trabalho de Serra o seguinte:
“O pressuposto teórico desta etnografia do quotidiano não foi apenas o prazer
de descrever as coisas, mas sim de encontrar um ponto de articulação daquilo
que faz de nós moçambicanos e, portanto, diferentes de quem não é”. Nesse artigo, publicado em Fevereiro, uma
espécie de tributo à Serra na véspera da sua partida, Macamo, um dos mais
representativos sociólogos das novas gerações (se calhar o sucessor de Serra na
profusão da sua produção), arrisca-se a dizer que o agora finado académico foi
o homem que “produziu” a sociedade moçambicana. “Ele produziu a sociedade na
sua ‘oficina de sociologia’ no Centro de Estudos Africanos, como parte duma agenda
intelectual alicerçada na descrição minuciosa e aturada daquilo que ele chamou
de ‘crenças anómicas de massas’”.
O sociólogo barbudo
Mais recentemente, nos primórdios das redes
sociais, Carlos Serra apaixonou-se pelo bloguismo, através do seu “Diário de um
Sociólogo”, criado em 2006, com entradas diárias até seu último texto,
publicado a 17 de Janeiro de 2020. A 19 de Janeiro, o blog anunciava que ele
estava hospitalizado. O blog, enquanto não surgiram os facebooks e quejandos,
foi uma referência incontornável de leitura diária em Moçambique. “Ele gostava
de polemizar sobre tudo e chegou uma altura em que o blog era popularíssimo.
Todos queriam aparecer lá”, lembra o jornalista Fernando Lima.
Quando se reformou, Serra estava preocupado
com uma coisa: o facto de o CEA não ter uma revista científica regular. Ele
estava empenhado em dinamizar qualquer nesse sentido, usando agora as
oportunidades digitais. “Morreu o homem, mas ficou a obra do Sociólogo! A
mentalidade Sociológica, tão cara à Serra, perdeu um combatente, mas não o
combate. Serra se foi, mas deixou-nos o testemunho”, diz Patricio Langa. Os
sociólogos moçambicanos queriam homenagear Carlos Serra ainda em vida, mas
agora vai ser um “Festchrift Póstumo”, de acordo com Langa.
“Até já sociólogo barbudo”, despede-se de
Serra outro de seus antigos alunos na UFICS, o também sociólogo Hélder Jauana,
que se recorda sobretudo dos “novos combates pela mentalidade sociológica”, que
o Professor inculcava na aulas e seminários de pesquisa. O corpo de Carlos Serra
será cremado em Portugal, oportunamente, e suas cinzas trazidas a Moçambique,
onde haverá uma homenagem pública. (cartamz.com)