Durante
a madrugada, o sono teimava em não dormir. Liguei o notebook e vi a última meia
hora de “Bukowski – Born Into This”, e fiquei, como o lobo cachaceiro, a
repetir “Why are you so mean to me”, como se me não bastasse a saudade talhada
nas paredes brancas do quarto da casa de hóspedes.
Acordei
pouco antes das nove horas. O mata-bicho, que é grátis, não tinha graça ou
sabor: dois pedaços de mandioca cozida; uma porçãozinha de folhas esventradas
de alface e uma omeleta de tomate e cebola transparente. (Comi os ovos e pedi
um outros, a empregada – que não era a Fátima, muito linda e sorridente –
esclareceu-me que “É um ovo por hóspede!” e que, daquela vez, não faria caso.
Com a garfada na boa, lembrei-me de quando eu vivia na Mafalala, próximo da
fábrica de gelo. No último andar do prédio, morava o Manuelito com um irmão
mais velho que era membro de uma gang famosa, dois primos e a avó, que cuidava
da casa. Uma vez o Manuelito contou-me que a avó, quando ia bater ovos para uma
omeleta, adicionava-lhes dois fiozinhos de água, para aumentar-lhes a
quantidade e assim chegasse a todos.). Comi o que restava da omeleta
transparente preocupado, fazia-se tarde e eu tinha que ir apresentar-me na
escola onde trabalharia.
Lichinga
é uma cidade. Lichinga não tem uma rede de transportes urbanos. Assustei-me,
como é, então, a mobilidade dos munícipes? Uma vasta nuvem de motorizadas faz
de cápsula de teletransporte. Por todo o lado, nas esquinas, em pontos
aleatórios, os moto-taxistas – que não usam capacetes e tão-pouco os oferecem
aos seus clientes (o risco é por conta própria) – estão prontos para ganhar
tempo. As deslocações custam, em média, 50 meticais. Num mês, isso é um luxo
para a maioria da população. Tive pena das crianças, dos alunos, de todos. “As
pessoas já estão acostumadas, andam sete, vinte quilómetros, é normal.”,
disse-me o guarda da hospedaria. “Táxi!”, chamou ele. Eu subi e fui fazendo
perguntas ao piloto.

Deixei
para trás a enorme escola secundária e trepei um outro moto-táxi em direcção à
Universidade Católica local. A estrada era de saibro e fazia uma poeira danada.
A Milena, que estudara comigo em Maputo, coordena o departamento de
administração pública. Ela surgiu quarenta minutos depois (sim, eu tinha muito
tempo e estivera a ler), mais forte do que eu me lembrava, com os lábios da cor
de beterraba e um “cabelo humano” longo e liso. Depois de cerca de uma hora de
conversa e mesmo na porta de saída da sala dos professores, notei um enorme
cartaz que estabelecia os trajes e a aparência para os estudantes. Policiamento
do decoro! Um dos pontos definia: “É proibido o cabelo despenteado…”. Brinquei:
“Assim como o meu?”, a Milena sorriu, “Sim, aqui tu não estudarias”.
Decidi
almoçar em um restaurante que me tinha sido indicado, o “2+1”, que estava cheio
por conta de uma formação que acontecia na sala ao lado, sobre a prevenção da
malária. Pedi uma cerveja e esperei por uma mesa. No fim, ficou o restaurante
vazio. Ao meu lado, quatro membros de um partido político discutiam cargos e
nomeações. “… Ele ficou chateado quando descobriu quem o irá substituir…”,
disse um; “Essa coisa de cessar funções deverá ser um acto público…”, disse o
outro; “Há um informante entre nós e ele já foi descoberto…”, disse um
terceiro; eu senti-me um agente secreto. E comia um peixe com legumes. Choveu
bastante depois. Fez-se um charco no coração do restaurante e o toilette estava
inundado. Para terminar a noite, vendi alguns livros e fechei a programação
para ir ao Lago Niassa no dia seguinte.
(Pereira Lopes)