António Emílio Leite Couto, biólogo,
investigador do meio ambiente, andarilho que correu Moçambique de lés a lés,
poeta que conhece o território e as suas gentes como poucos, hospedeiro
heterónimo do escritor Mia Couto, homem de ciência que frequentou os três
primeiros anos de Medicina, membro da comissão que apoia o Governo moçambicano
contra a covid-19, fala ao Expresso sobre a pandemia.
-- Mia Couto, ou melhor, o biólogo António
Leite Couto integra a Comissão Técnica e Científica de Assessoria ao Governo de
Moçambique para a covid-19. Qual o trabalho desta comissão?
-- Foi criada em Março, quando não tinha
sido detectado nenhum caso. Creio que o primeiro surgiu dois dias depois.
Refiro isto porque é importante o tempo em que se preparam as respostas para um
processo que precisa de antecipação. Como noutros países, esta comissão
assessora cientificamente o Governo para que as decisões sejam fundamentadas.
Parece um pormenor, mas a existência destas task forces tem um sentido político
que não nos pode escapar: trata-se uma vitória importante da ciência num
momento em que a governação de nações passou para as mãos de demagogos que se
empenham numa cruzada contra a ciência.
-- Como é que um país em que boa parte da
população tem de acarretar água à cabeça — e talvez nem tenha dinheiro para
sabão — consegue lavar as mãos, uma das regras básicas para se proteger da
pandemia? A utilização de cinzas pode ser eficaz em termos científicos?
--Em Moçambique há comunidades onde é
difícil aplicar parte das medidas de prevenção. Há lugares onde ainda é difícil
ter acesso a água, quanto mais sabão. É por isso que se fala das cinzas como
produto alternativo de desinfecção das mãos. Não tenho competência neste
assunto, mas é consenso que a cinza pode fazer o papel do sabão. Contudo não
creio que seja por carência desse tipo de materiais que as medidas não estão a
ser aplicadas no grau e na intensidade que acharíamos necessário. Há questões
de natureza cultural que acho que devem ser pensadas.
-- Quais?
--Quando se diz “fique em casa”, parte dos
citadinos pergunta: qual? Grande parte são emigrantes rurais recentes, mantêm
vivas duas casas, duas famílias, duas economias. Outra dificuldade é de
natureza conceptual. Não se trata de ignorância, mas há conceitos diversos do
que é doença, do que é tratar alguém. O que significa nessa outra cultura ser
assintomático? Como se entende que, perante uma doença que gerou tanto ruído,
se mande para casa todos os que estão doentes? No nosso caso, é assim que está
a suceder, não há ainda nenhum caso cuja gravidade sugira o internamento.
-- Os curandeiros, figuras muito
respeitadas pela população, podem ser aliados das autoridades de saúde na
difusão de informação e comunicação de casos suspeitos?
-- Não tenho dúvida que estão a ser
incluídos numa luta que é de toda a sociedade. Contaram-me que um grupo de
curandeiros se apresentou no Ministério da Saúde para dizer: os nossos
antepassados não conhecem esta doença, não nos podem guiar, por isso estamos
aqui para que nos digam como ajudar. Esta posição de humildade e empatia é algo
que me comoveu. Existe uma forma muito simplificada, diria europeizada, de
olhar a chamada medicina tradicional. Nós próprios, em Moçambique, cometemos
esse erro. Os “curandeiros” não podem ser equiparados aos médicos e enfermeiros
da medicina moderna. A doença não é vista da mesma maneira nesses dois mundos.
Buscam-se na medicina tradicional não o controlo, mas equilíbrios e harmonias.
É preciso aprender a conversar com o vírus, mais do que eliminá-lo.
-- As autoridades de saúde moçambicanas têm
apostado na prevenção. Quais as medidas mais importantes?
-- Será preciso tempo para medir a
eficiência de um conjunto de medidas tão diversas. As de mais difícil aplicação
têm que ver com uma cultura profundamente corporal e gregária. Por vezes,
tivemos de ir mais longe do que o chamado “bom senso”. Por exemplo,
desaconselhamos a praia, mesmo não estando em regime de confinamento. Houve
quem nos criticasse porque a praia é um lugar vasto, onde há espaço para manter
a distância e se pode apanhar sol num espaço aberto. Mas essa é a privacidade
que uma minoria busca na praia. A grande maioria vai para “ficar junto”. Essa
tendência é um valor, uma celebração instituída. As pessoas em Moçambique
despedem-se com um “estamos juntos”. E não limitam a saudação de um encontro a
um simples aperto de mão. Enquanto dura a conversa ficam de mãos dadas. O corpo
todo fala, os abraços pedem mais do que os braços.
-- Moçambique registava, quinta-feira, dois
óbitos e 230 contágios. Quais as razões para estes resultados aparentemente
positivos?
--Moçambique adoptou uma filosofia de
testar de forma focada. Não só porque não dispomos de reagentes para testagem
em massa, mas por nos parecer que esta abordagem dirigida tem mais sentido. No
início foram feitos testes em grupos onde seria mais provável a existência de
casos. Agora, abriu-se o leque. Os padrões de transmissão em África (ou na
maior parte de África) parecem obedecer a uma lógica diferente da do hemisfério
Norte. Mas é preciso saber se isto é verdade ou uma verdade temporária. Há
outras razões que resultam da capacidade e prontidão de intervenção de grande
parte dos Governos. Muitos países africanos tomaram medidas no início do
processo, ou mesmo “antes do início”. Uma foi o encerramento imediato dos
aeroportos e postos fronteiriços. Viajei pela Europa no início de Março, sem
que ninguém me fizesse uma pergunta, quando já havia centenas de casos.
--Não. Onde podemos ter vantagem é no
rastreio e testagem dos focos ainda reduzidos e nas cadeias de transmissão
identificadas. O que quer dizer que o sistema de saúde já está a ser posto à
prova naquilo que é essencial: prevenção e vigilância epidemiológica.
-- Não foi a primeira pandemia nem será a
última. Têm registos sobre o que foi feito no combate à pneumónica (gripe
espanhola) ou à gripe asiática que possam ser úteis?
-- Não tenho competência para responder.
Enquanto biólogo, o que me parece importante é alcançarmos um conhecimento mais
vasto e orgânico desse universo habitado pelos microrganismos. Foram feitos
progressos muito importantes, mas muito recentes. Existe ainda uma visão muito
centrada e narcisista na nossa própria espécie, continuamos a acreditar que
somos o centro e o topo da evolução biológica. Temos uma crença quase cega no
poder da tecnologia. Aquilo que chamamos o microcosmos, habitado por criaturas
para nós invisíveis, é realmente o macrocosmos. Somos todos biologicamente
mestiços. Os vírus moram dentro de nós. Não são intrusos, são parte da nossa
mais funda intimidade. Dez por cento do nosso material genético é composto por
elementos virais. Se nos quiséssemos “purificar”, no sentido de sermos apenas
feitos de células e genes humanos, seriamos reduzidos à não existência.
-- Disse numa entrevista ao “Correio”
(Brasil) que “os vírus são os grandes maestros da orquestra da vida”. Como
biólogo acha que temos de mudar comportamentos para evitar que se virem contra
nós?
-- Os vírus não se viram contra nós nem
contra ninguém. O seu modo de existir é usar a maquinaria de outras células.
Fazem isso desde o início da vida. Foram e são um dos principais e mais rápidos
criadores de diversidade, uma espécie de carteiros que entregam não apenas a carta,
mas se entregam a si mesmos. Alguns esquecem-se de sair da casa do
destinatário.
-- Acredita na capacidade da comunidade
científica para encontrar uma vacina a preço acessível em tempo útil?
-- Não sei, neste caso, o que pode ser
considerado o “tempo útil”. Acho que fica claro que o processo de conceber a
aprovar uma vacina passa por etapas incontornáveis. Não há atalhos. E não vai
haver “uma” vacina, com um modelo único e definitivo. Vamos precisar de uma
vacina que se irá renovando, de acordo com as mutações a que o vírus acabará
estando sujeito. Por outro lado, é preciso dizer que já existe vacina: é o
processo natural de infecção e imunização que, por razões de gestão logística,
estamos, ao que tudo indica, correctamente, a adiar. Mas esse adiamento tem um
preço. Estamos a interferir no processo natural de evolução do vírus e da
doença. Mas é preciso que não continuemos a pensar que somos os legítimos
mandatários para comandar estes fenómenos. Como dizem os curandeiros de
Moçambique: tudo ficará bem quando aprendermos a conversar com esta criatura.
Vírus e bactérias, a que chamamos com alguma arrogância micróbios, estão há
mais de três mil milhões de anos a produzir este milagre que é a vida. Foram as
bactérias que inventaram os processos básicos de toda a vida planetária:
fermentação, respiração celular, fotossíntese. Há milhões de anos que esses
invisíveis laboratórios produzem o que nenhuma tecnologia humana foi capaz de
inventar.
-- O escritor Mia Couto encontra sentido na
pandemia?
-- Nem sei se a literatura tem essa função
de sugerir sentidos, mas de interrogar aqueles que pensamos serem únicos e
suficientes. A pandemia não é um fenómeno vivido da mesma maneira nos
diferentes quadrantes do mundo. Para a maioria dos moçambicanos, não haver
lugar numa urgência não é nada de novo. Sem ofensa, nunca ninguém me perguntou
se encontro algum sentido na malária, que contagiou no ano passado 230 milhões
e matou 405 mil pessoas. Milhões de moçambicanos sobrevivem quotidianamente a
doenças que, se atingissem com a mesma gravidade a Europa, estariam a ser
vividas como um drama de dimensão mundial.
(Por Manuela Goucha Soares)