segunda-feira, 29 de junho de 2020

Todos biologicamente mestiços


Mia Couto emocionado com Prémio Eduardo Lourenço 2011
António Emílio Leite Couto, biólogo, investigador do meio ambiente, andarilho que correu Moçambique de lés a lés, poeta que conhece o território e as suas gentes como poucos, hospedeiro heterónimo do escritor Mia Couto, homem de ciência que frequentou os três primeiros anos de Medicina, membro da comissão que apoia o Governo moçambicano contra a covid-19, fala ao Expresso sobre a pandemia.

-- Mia Couto, ou melhor, o biólogo António Leite Couto integra a Comissão Técnica e Científica de Assessoria ao Governo de Moçambique para a covid-19. Qual o trabalho desta comissão?
-- Foi criada em Março, quando não tinha sido detectado nenhum caso. Creio que o primeiro surgiu dois dias depois. Refiro isto porque é importante o tempo em que se preparam as respostas para um processo que precisa de antecipação. Como noutros países, esta comissão assessora cientificamente o Governo para que as decisões sejam fundamentadas. Parece um pormenor, mas a existência destas task forces tem um sentido político que não nos pode escapar: trata-se uma vitória importante da ciência num momento em que a governação de nações passou para as mãos de demagogos que se empenham numa cruzada contra a ciência.

-- Como é que um país em que boa parte da população tem de acarretar água à cabeça — e talvez nem tenha dinheiro para sabão — consegue lavar as mãos, uma das regras básicas para se proteger da pandemia? A utilização de cinzas pode ser eficaz em termos científicos?
Expresso | Mia Couto. O conto que ele escreveu para o Expresso--Em Moçambique há comunidades onde é difícil aplicar parte das medidas de prevenção. Há lugares onde ainda é difícil ter acesso a água, quanto mais sabão. É por isso que se fala das cinzas como produto alternativo de desinfecção das mãos. Não tenho competência neste assunto, mas é consenso que a cinza pode fazer o papel do sabão. Contudo não creio que seja por carência desse tipo de materiais que as medidas não estão a ser aplicadas no grau e na intensidade que acharíamos necessário. Há questões de natureza cultural que acho que devem ser pensadas.

-- Quais?
--Quando se diz “fique em casa”, parte dos citadinos pergunta: qual? Grande parte são emigrantes rurais recentes, mantêm vivas duas casas, duas famílias, duas economias. Outra dificuldade é de natureza conceptual. Não se trata de ignorância, mas há conceitos diversos do que é doença, do que é tratar alguém. O que significa nessa outra cultura ser assintomático? Como se entende que, perante uma doença que gerou tanto ruído, se mande para casa todos os que estão doentes? No nosso caso, é assim que está a suceder, não há ainda nenhum caso cuja gravidade sugira o internamento.
-- Os curandeiros, figuras muito respeitadas pela população, podem ser aliados das autoridades de saúde na difusão de informação e comunicação de casos suspeitos?
Política e Sociedade: O livro que era uma casa | A casa que era um ...-- Não tenho dúvida que estão a ser incluídos numa luta que é de toda a sociedade. Contaram-me que um grupo de curandeiros se apresentou no Ministério da Saúde para dizer: os nossos antepassados não conhecem esta doença, não nos podem guiar, por isso estamos aqui para que nos digam como ajudar. Esta posição de humildade e empatia é algo que me comoveu. Existe uma forma muito simplificada, diria europeizada, de olhar a chamada medicina tradicional. Nós próprios, em Moçambique, cometemos esse erro. Os “curandeiros” não podem ser equiparados aos médicos e enfermeiros da medicina moderna. A doença não é vista da mesma maneira nesses dois mundos. Buscam-se na medicina tradicional não o controlo, mas equilíbrios e harmonias. É preciso aprender a conversar com o vírus, mais do que eliminá-lo.

-- As autoridades de saúde moçambicanas têm apostado na prevenção. Quais as medidas mais importantes?
Templo Cultural Delfos: Fernando Leite Couto - uma voz cheia de vozes
-- Será preciso tempo para medir a eficiência de um conjunto de medidas tão diversas. As de mais difícil aplicação têm que ver com uma cultura profundamente corporal e gregária. Por vezes, tivemos de ir mais longe do que o chamado “bom senso”. Por exemplo, desaconselhamos a praia, mesmo não estando em regime de confinamento. Houve quem nos criticasse porque a praia é um lugar vasto, onde há espaço para manter a distância e se pode apanhar sol num espaço aberto. Mas essa é a privacidade que uma minoria busca na praia. A grande maioria vai para “ficar junto”. Essa tendência é um valor, uma celebração instituída. As pessoas em Moçambique despedem-se com um “estamos juntos”. E não limitam a saudação de um encontro a um simples aperto de mão. Enquanto dura a conversa ficam de mãos dadas. O corpo todo fala, os abraços pedem mais do que os braços.

-- Moçambique registava, quinta-feira, dois óbitos e 230 contágios. Quais as razões para estes resultados aparentemente positivos?
--Moçambique adoptou uma filosofia de testar de forma focada. Não só porque não dispomos de reagentes para testagem em massa, mas por nos parecer que esta abordagem dirigida tem mais sentido. No início foram feitos testes em grupos onde seria mais provável a existência de casos. Agora, abriu-se o leque. Os padrões de transmissão em África (ou na maior parte de África) parecem obedecer a uma lógica diferente da do hemisfério Norte. Mas é preciso saber se isto é verdade ou uma verdade temporária. Há outras razões que resultam da capacidade e prontidão de intervenção de grande parte dos Governos. Muitos países africanos tomaram medidas no início do processo, ou mesmo “antes do início”. Uma foi o encerramento imediato dos aeroportos e postos fronteiriços. Viajei pela Europa no início de Março, sem que ninguém me fizesse uma pergunta, quando já havia centenas de casos.

UNIVERSO DOS LEITORES: ESCRITORES: Mia Couto-- Se o contágio subir, o sistema de saúde tem capacidade de resposta?
--Não. Onde podemos ter vantagem é no rastreio e testagem dos focos ainda reduzidos e nas cadeias de transmissão identificadas. O que quer dizer que o sistema de saúde já está a ser posto à prova naquilo que é essencial: prevenção e vigilância epidemiológica.

-- Não foi a primeira pandemia nem será a última. Têm registos sobre o que foi feito no combate à pneumónica (gripe espanhola) ou à gripe asiática que possam ser úteis?
-- Não tenho competência para responder. Enquanto biólogo, o que me parece importante é alcançarmos um conhecimento mais vasto e orgânico desse universo habitado pelos microrganismos. Foram feitos progressos muito importantes, mas muito recentes. Existe ainda uma visão muito centrada e narcisista na nossa própria espécie, continuamos a acreditar que somos o centro e o topo da evolução biológica. Temos uma crença quase cega no poder da tecnologia. Aquilo que chamamos o microcosmos, habitado por criaturas para nós invisíveis, é realmente o macrocosmos. Somos todos biologicamente mestiços. Os vírus moram dentro de nós. Não são intrusos, são parte da nossa mais funda intimidade. Dez por cento do nosso material genético é composto por elementos virais. Se nos quiséssemos “purificar”, no sentido de sermos apenas feitos de células e genes humanos, seriamos reduzidos à não existência.

-- Disse numa entrevista ao “Correio” (Brasil) que “os vírus são os grandes maestros da orquestra da vida”. Como biólogo acha que temos de mudar comportamentos para evitar que se virem contra nós?
Mia Couto: cientista de dia e escritor à noite - Revista Galileu ...-- Os vírus não se viram contra nós nem contra ninguém. O seu modo de existir é usar a maquinaria de outras células. Fazem isso desde o início da vida. Foram e são um dos principais e mais rápidos criadores de diversidade, uma espécie de carteiros que entregam não apenas a carta, mas se entregam a si mesmos. Alguns esquecem-se de sair da casa do destinatário.

-- Acredita na capacidade da comunidade científica para encontrar uma vacina a preço acessível em tempo útil?
-- Não sei, neste caso, o que pode ser considerado o “tempo útil”. Acho que fica claro que o processo de conceber a aprovar uma vacina passa por etapas incontornáveis. Não há atalhos. E não vai haver “uma” vacina, com um modelo único e definitivo. Vamos precisar de uma vacina que se irá renovando, de acordo com as mutações a que o vírus acabará estando sujeito. Por outro lado, é preciso dizer que já existe vacina: é o processo natural de infecção e imunização que, por razões de gestão logística, estamos, ao que tudo indica, correctamente, a adiar. Mas esse adiamento tem um preço. Estamos a interferir no processo natural de evolução do vírus e da doença. Mas é preciso que não continuemos a pensar que somos os legítimos mandatários para comandar estes fenómenos. Como dizem os curandeiros de Moçambique: tudo ficará bem quando aprendermos a conversar com esta criatura. Vírus e bactérias, a que chamamos com alguma arrogância micróbios, estão há mais de três mil milhões de anos a produzir este milagre que é a vida. Foram as bactérias que inventaram os processos básicos de toda a vida planetária: fermentação, respiração celular, fotossíntese. Há milhões de anos que esses invisíveis laboratórios produzem o que nenhuma tecnologia humana foi capaz de inventar.

-- O escritor Mia Couto encontra sentido na pandemia?
MIA COUTO, IMPORTANTE LITERATO DE MOÇAMBIQUE-- Nem sei se a literatura tem essa função de sugerir sentidos, mas de interrogar aqueles que pensamos serem únicos e suficientes. A pandemia não é um fenómeno vivido da mesma maneira nos diferentes quadrantes do mundo. Para a maioria dos moçambicanos, não haver lugar numa urgência não é nada de novo. Sem ofensa, nunca ninguém me perguntou se encontro algum sentido na malária, que contagiou no ano passado 230 milhões e matou 405 mil pessoas. Milhões de moçambicanos sobrevivem quotidianamente a doenças que, se atingissem com a mesma gravidade a Europa, estariam a ser vividas como um drama de dimensão mundial.

(Por Manuela Goucha Soares)

quinta-feira, 11 de junho de 2020

O “Crocodilo” de Matalane


A Câmara de Amadora, em Lisboa, Portugal, atribuiu no passado dia 6 de Junho, o nome Malangatana a uma das suas ruas em homenagem ao Mestre, no dia em que este completaria 80 anos de vida. O evento, dá inicio a uma reflexão sobre a vida e obra de Malangatana cujo o objectivo é a documentação da sua vasta obra através de debates, conversas, exposições e outras iniciativas promovidas pela família, Fundação Malangatana, amigos e instituições.
Com o pincel, a sua arma de arremesso, retratou as injustiças do colonialismo, e pelo meio do caminho, o bicho do nacionalismo se instaurou no seu coração que agora parou. Pela PIDE, foi preso e julgado por pertencer a uma célula clandestina da Frelimo.
Mesmo nas masmorras não largou o pincel. Em liberdade, e com a chegada dos adventos das independências das antigas colónias portuguesas, a expressão da sua obra conquistou o mundo. Mas quem é este homo-artista que ultrapassou e quebrou barreiras espalhando o seu talento pelo universo?

Malangatana Valente Ngwenya (“crocodilo”, na língua ronga) nasceu em 6 de junho de 1936 em Matalana, periferia de Lourenço Marques (hoje Maputo), capital da então província ultramarina de Moçambique. Foi pastor, agricultor, aprendiz de curandeiro e apanha bolas em um clube de ténis. Foi lá que conheceu o biólogo português Augusto Cabral, que o ajudou nos primeiros passos na arte. Mas seria o arquirtecto Pancho Guedes o seu “descobridor” que lhe cedeu espaço para pintar a noite na sua garagem. E não ficou por aqui. Todos os meses lhe comprava dois quadros a preços de pechincha. Pouco depois, o rapaz decidiu apresentar o trabalho ao público. Foi um sucesso. “De um ano para o outro [o Malangatana] passou de simples empregado de bar e limpezas num clube de elite moçambicano para um pintor de grande reputação”, recordou Pancho Guedes, surpreendido pela morte do antigo protegido. “Fazia uma pintura que era só dele, não precisando que ninguém lha ensinasse ou interpretasse”, disse Guedes a propósito da morte de Malangatana.

Nomeado “Artista da Paz” pela Unesco, ele ficou famoso no mundo pelos retratos que fez da guerra colonial em Moçambique. Enormes murais de Malangatana decoram vários prédios em Maputo, como, por exemplo, o hall de entrada do Ministério do Interior e as paredes externas do Museu de História Natural. Sua obra é marcada pelas pinceladas fortes, de cores vibrantes, que retrataram os moçambicanos com expressividade e sentimento. Os retratos de rostos sofridos pela opressão colonial e pela guerra de libertação percorreram o mundo. Além de pintar, o artista também fazia esculturas, tapeçarias e usava muitos elementos naturais nas suas obras, como raízes, conchas, sementes e areia.
Foi poeta, actor, dançarino, músico, dinamizador cultural, organizador de festivais, filantropo e até deputado da Frelimo, partido no poder em Moçambique desde a independência. A morte do ‘Crocodilo’ como gostava de ser chamado pelos mais próximos, apanhou de surpresa aos seus colegas, muitos deles que deram os seus passos na sua casa – aonde tinha o atelier – que continuam estupefactos e incrédulos. O escritor Mia Couto considera que com a morte de Malangantana Moçambique “perdeu uma espécie de embaixador permanente da cultura”.
A 6 de Junho de 2006, foi homenageado em Matalana por ocasião do seu 70º aniversário, sendo sido condecorado pelo presidente da República de Moçambique com a Ordem Eduardo Mondlane do 1º Grau, o mais alto galardão do pais, em reconhecimento do trabalho desenvolvido não só nas artes plásticas mas também como o maior embaixador da cultura moçambicana. Nessa mesma data foi lançada a Fundação Malangatana Ngwenya, com sede em Matalana, sua terra natal. A sua vida e obra tem sido objecto de vários filmes e documentários. Está representado em vários Museus, por todo o mundo, bem como, em inúmeras colecções particulares. Até a data da sua morte, Malangatana era membro do Conselho de Estado, um colégio criado para aconselhar ao Presidente da República sobre as várias questões da vida do país.