Yara
Costa acredita muito na contribuição do cinema e do documentário, em
particular, na construção de um imaginário moçambicano. Segundo entende a
realizadora de Entre eu e Deus – história sobre a adopção de um islão
considerado “puro”, por uma jovem da Ilha de Moçambique –, os documentários
devem reflectir os fenómenos que acontecem no quotidiano das sociedades, sem
julgamento. E mais, a cineasta explica por que o documentário está “declínio”
no país.
Há dias estreou o seu terceiro filme, intitulado Entre
eu e Deus. Aconteceu do jeito que previu?
Não,
superou muito as expectativas. Sabia que o filme iria criar interesse, mas não
até termos de criar uma nova sessão porque houve gente que ficou de fora. A
adesão foi tanta que, mesmo na segunda sessão, a sala ficou esgotada. Isso
mostrou-me que eu estava equivocada, que existe essa demanda para filmes
moçambicanos e para documentários. As pessoas querem ver-se retratadas no ecrã.
Tivemos muito público diversificado na estreia de Entre eu e Deus.
Este filme surge de um outro projecto cinematográfico
seu. Como como tudo aconteceu?
A
história começou há alguns anos, quando, em conversa com a Karen, eu disse que
gostaria de fazer um filme sobre ela. Ano passado, surgiu a oportunidade,
através de um concurso lançado pela União Europeia com os PALOP e Timor Leste,
para celebrar 25 anos de parceria. Ganhei para Moçambique, o que me permitiu
fazer a curta-metragem Vestindo a religião. No processo, aconteceu que o
material era muito, então percebemos que era uma pena ter que contar uma
história em tão pouco tempo, quando ainda havia muito por explorar. Então, fiz
a curta com seis minutos e, ano depois, esta longa-metragem com uma hora.
Este filme lida com um assunto sensível: a religião. Que
cuidados teve que ter na preparação do script?
Quando
apresentei o projecto pela primeira vez, na residência artística onde
participei antes de rodar o filme, houve pessoas que me disseram que tinha de
ter muito cuidado. Alguns até disseram-me que, se estivessem no lugar, nem
fariam o filme por mexer com muitas sensibilidades. Aí eu dizia que se calhar
era por isso que gostava de fazer o filme, porque, se há um tema importante,
que toca a tanta gente, temos que falar do mesmo. O que tentei fazer foi ser
mais respeitosa, honesta e sincera possível, sem julgamentos e juízos de valor,
mesmo porque este não é um filme sobre o que acho da religião. Não. É um filme
sobre alguém que acho que tem uma história para contar. E eu contei a história
da Karen por via das câmaras, ainda que não concorde com algumas posições dela
– a Karen sabe e nós falamos disso antes.
Acredita que a Karen é uma jovem representativa da nova
vaga de muçulmanos na Ilha de Moçambique?
Ela
não é única, dá a cara a um fenómeno geral, que não acontece apenas em
Moçambique e com a religião islâmica. O filme tem várias camadas, e, uma delas
é sobre o que é ser jovem hoje em dia nos nossos países, com tantas
dificuldades, falta de referência e oportunidades. A Karen dá a cara a essa
geração que faz suas escolhas, diferentes dos caminhos dos pais, o que fomenta
um conflito de gerações porque os mais velhos acreditavam numa coisa e os mais
novos noutra.
Tenho a percepção de que a produção dos documentários
está em decadência. Quais vêm a ser as causas?
Não
temos um ambiente que encoraja a produção dos documentários. É uma pena porque,
financeiramente, deve ser a forma mais viável de apostar, mas não há fomento à
produção. Fico muito triste quando percebo que, sobretudo os mais novos, pensam
que documentários são filmes institucionais ou de ONG.
Qual foi a maior dificuldade na produção deste filme?
Produzi-lo
neste contexto sem cair em estereótipos e nem abordar o assunto que pudesse
prejudicar muita gente.
O que significa fazer cinema para si?
É
uma forma de me expressar. Adoro ouvir e contar histórias. Para mim, fazer
cinema é isso, contar boas histórias, que nos ajudam a compreendermo-nos como
seres humanos.
O conflito é recorrente na sua obra. Além de Entre eu
e Deus, A travessia e Por que aqui? também são filmes que se
alicerçam ao conflito. Consegue explicar?
Talvez
tenha a ver com o tipo de histórias que me atrai. Não é que goste do conflito,
mas interessa-me perceber os motivos do conflito acontecer. Acredito que,
assim, desperto as pessoas para os assuntos a acontecerem no nosso dia-a-dia,
que não prestamos atenção.
Como acontece A travessia?
Na
verdade, fui para o Haiti, em 2010, na altura da comemoração do ano dos
afrodescendentes, um conceito muito recorrente na América. Como moçambicana que
já havia vivido no Brasil, nos Estados Unidos e em Cuba, onde fiz extensão do
curso de cinema, incomodada com esse conceito escutado nesses países, resolvi
fazer um filme no qual as pessoas iriam-me explicar o que é ser
afrodescendente. A ideia era filmar em Nova Iorque, num bairro negro, com forte
ligação com África, e no Brasil, por ser um país com maior população negra fora
de África. Foi quando me disseram que tinha de ir ao Haiti, a primeira República
negra independente, em 1804, e que acabou com a escravatura muito antes dos
Estados Unidos – a cartilha dos Direitos Humanos das Nações Unidas é baseada na
constituição do Haiti daquela altura. Então foi parar àquele país para o
conhecer. A ideia era ficar três semanas, mas acabei ficando dois anos. Percebi
que o Haiti é imenso e que precisa de um filme, que ainda não fiz, está a
amadurecer: Black material, uma história que começa na Ilha de
Moçambique com a saída de um barco de escravos até Haiti, onde um africano
preserva a identidade já perdida pelos seus, em África. A travessia surgiu
porque o Haiti e a República Dominicana estão de costas viradas há muitos anos.
Um país aceita a sua herança africana e outro não quer saber disso.
Com que cinema sonha para o seu país?
Sonho
com um cinema rico em histórias, que reflicta a nossa diversidade, riqueza
cultural e que nos ajude a construir um país melhor, mais confortável para
todos e não para alguns.
Sugestões artísticas para os leitores?
Sugiro
o filme Memória em três actos, de Inadelso Cossa, e a expressão musical
sobre Ilha de Moçambique.
Perfil
Yara Costa é realizadora moçambicana. Tem 36 anos de
idade e formou-se em vários países: África do Sul, onde conclui estudos
secundários; Brasil, onde, conclui estudos em jornalismo; Estados Unidos, onde
fez mestrado em documentário, na Universidade de Nova York; e Cuba, onde fez
extensão do curso de cinema. Em 2013, foi uma dos seis realizadores
seleccionadas para a realização de documentário da Televisão Al Jazeera. É
autora de três filmes: Por que aqui?
Histórias chinesas em África; A
travessia e Entre Eu e Deus.
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